sexta-feira, 7 de março de 2025

Emendas remendadas - José Sarney

Correio Braziliense

É inacreditável o que ocorre agora no Congresso Nacional: predominantemente, só se fala em dinheiro, dinheiro das emendas

Quando fui presidente havia três orçamentos: o orçamento fiscal, o das estatais e o do Banco Central. Na verdade, dos três orçamentos, não tínhamos nenhum, pois cada um apresentava um quantitativo diferenciado, como ocorre hoje quando o ministro Flávio Dino procura o nome do parlamentar autor de emendas ao orçamento, o seu valor e destino e seus objetivos. Naquele tempo, tínhamos uma leitura mais simplificada e não sabíamos qual dos três orçamentos era o verdadeiro. Beaucoup de lois, pas de lois, dizia Montesquieu.

A ideia da existência do parlamento foi consolidada na Inglaterra quando, no século 12, alguns endinheirados desejaram participar das regras de tributação nos tempos do Rei João, o João Sem Terra, que proclamou os direitos civis na Grã-Bretanha, que não possui uma Constituição escrita, seguindo as regras consuetudinárias que permanecem válidas até hoje — e ninguém as contesta.

A interpretação teológica dos tributos foi utilizada pelos sacerdotes e escribas do tempo de Jesus, que lançaram mão da questão para obter d'Ele uma resposta que O incriminasse e assim lhe perguntaram: "É-nos lícito dar tributo a César, ou não?" E, diz São Lucas, Ele respondeu: "Por que me tentais? Mostrai uma moeda que tenha imagem e inscrição." E então: "De quem é esta imagem e inscrição?" "De César", foi a resposta. Disse-lhe então Jesus: "Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." E assim não puderam apanhá-Lo em palavra alguma diante do povo.

Essa definição teológica do dinheiro significa que dinheiro é coisa dos homens, que podem utilizá-lo para o bem ou para o mal. Em geral, os que dispõem de muito dinheiro podem empregá-lo em coisas profanas, e os que não têm utilizam o pouco que conseguem para a subsistência do corpo.

Agora, no caso das emendas ao orçamento, certamente elas não são disputadas por elas mesmas, mas, sim, porque se transformam em dinheiro e não se esgotam no seu destino, e acabam se prestando para acusações a prefeitos, vereadores, deputados e, por meios indevidos, vão parar — segundo acusações que circulam, difíceis de se confirmar — nesses agentes públicos.

No começo de Brasília presenciei uma discussão a bordo de um avião entre algumas freiras e o deputado Tenório Cavalcanti, que era uma figura folclórica na Câmara dos Deputados, pois portava sempre uma metralhadora de nome "Lurdinha", com que enfrentava seus adversários em Caxias, no Rio de Janeiro.

Naquele tempo tínhamos apenas aviões da Scania que faziam a linha do Rio de Janeiro para a futura capital da República. Eram aviões que voavam a baixa altitude, não pressurizados e desconfortáveis. Nessa viagem a aeronave jogava bastante, e as freiras rezavam muito. Tenório Cavalcante disse a elas: "Irmãs, se esse avião cair, iremos para o Céu". Elas lhe responderam: "Não diga isso, deputado". Ele retrucou: "As senhoras não querem o Céu? Eu quero. Lá não tem dinheiro, não se compra nada e tem de tudo para todos". As freiras apenas repetiam: "Não diga isso, deputado".

Foi mais uma interpretação teológica do dinheiro a sua perda de valor.

O que se deseja mesmo aqui é fixar que é inacreditável o que ocorre agora no Congresso Nacional: predominantemente, só se fala em dinheiro, dinheiro das emendas, com que muitos setores receberam milhões de recursos para emprego político, mas fugindo às regras constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

A política tem uma disciplina horizontal, somente os regimes de partidos únicos têm disciplina vertical. A disciplina dos partidos democráticos deve ser feita horizontalmente. Quando é invertida, trata-se de autoritarismo, que foge ao exercício da democracia interna, que não é exercida.

O que estamos vendo nos partidos atuais é uma decisão das cúpulas, que, de certo modo, é uma deformação do instrumento básico do regime democrático, baseado nos partidos políticos; e, sem parlamento forte, a democracia é difícil de existir.

Lembro-me, quando fui parlamentar no Rio de Janeiro — o líder do meu partido, a UDN, era Otávio Mangabeira, e eram seus colegas de liderança Carlos Lacerda, Afonso Arinos, Adauto Lúcio Cardoso, Aliomar Baleeiro, Bilac Pinto e outros —, que a ascensão política e parlamentar era assegurada pelo valor pessoal, nunca por meios espúrios. Os nossos discursos eram assistidos por grande e qualificada plateia, os jornais os publicavam na íntegra, e assim iam se construindo os líderes, e os comandantes nessa escola se afirmavam.

*Ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras

 

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