Folha de S. Paulo
Como permitir que mera lei ordinária assegure
a impunidade daqueles tentaram abolir o Estado democrático de Direito?
Uma das poucas vantagens de ter uma história
constitucional acidentada é a oportunidade de aprender com o passado. Após o
pesadelo da ascensão
do nazismo, que corroeu por dentro a Constituição de
Weimar, os alemães entenderam que era necessário blindar a nova constituição
contra futuros ciclos autoritários.
De acordo com o artigo 79 (3) da Lei
Fundamental, são inadmissíveis alterações constitucionais que afetem os
princípios da dignidade humana, do estado democrático de direito ou da
federação. Lá se vão mais de 75 anos de uma democracia
que ressurgiu das cinzas, demonstrando uma incrível capacidade de se
defender de se seus inimigos.
Aqui também guardamos as cicatrizes de duas experiencias autoritárias, ao longo do século 20, além de inúmeros solavancos e tentativas de golpe. Como reação a esse passado conturbado, a Constituição de 1988 adotou um robusto sistema de cláusulas pétreas, que proíbe a deliberação de propostas de emendas tendentes a "abolir" a democracia, a separação dos Poderes, os direitos fundamentais, bem como a federação.
No contexto desse nosso constitucionalismo
defensivo, aprovar uma lei anistiando pessoas condenadas por tentar
"abolir" nosso Estado democrático de Direito, como
pretendem os assanhados aliados de Bolsonaro, consistiria em uma grave
violação à Constituição.
A questão é simples. Se a Constituição proíbe
a deliberação de emendas tendentes a "abolir" os princípios
fundamentais que a estruturam, como poderia permitir que uma mera lei ordinária
assegurasse a impunidade daqueles tentaram "abolir" o Estado
democrático de Direito? Evidente que essa lei seria inconstitucional.
Mas não se trata apenas de uma questão
formal. A condição básica para que as democracias sobrevivam é que os
vitoriosos nas urnas governem de acordo com a Constituição e os derrotados
sigam para a oposição, enquanto aguardam as próximas eleições. O compromisso
com as regras do jogo é, portanto, indispensável. Ao abrir a possibilidade de
anistia para aqueles que conspiram contra essas regras básicas da democracia, a
própria sobrevivência democrática fica comprometida.
Não procede a ideia de que a anistia
contribuiria para a pacificação e reconciliação nacional. Isso apenas
fomentaria a disposição de setores autoritários de continuar atentando contra o
resultado das urnas todas as vezes que esses resultados lhes forem adversos.
Mais do que isso, também fomentaria os vencedores a exercer o poder à margem
dos limites estabelecidos pela lei e pela Constituição, sob a certeza de que
ficarão impunes no futuro.
Se existe uma percepção de que a lei
de Defesa do Estado Democrático de Direito, ironicamente sancionada
por Jair
Bolsonaro, em 2021, estabeleceu penas muito rigorosas ou de que o
Supremo não
distinguiu corretamente as condutas de cada um dos condenados, cumpre
ao Congresso Nacional corrigir a lei, para que as sentenças possam ser
eventualmente revistas, mas jamais promover a impunidade dos inimigos da nação.
É preciso ter clareza que tentar abolir o
Estado democrático de Direito, assim como depor um governante legitimamente
eleito, constituem condutas gravíssimas. Quem não tiver compreensão sobre as
consequências da erosão do regime democrático deveria ser convidado a passar
uma temporada na Venezuela ou na Rússia, para refletir sobre a natureza
perversa dos regimes autoritários.
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