Globo
Com a licença do vascaíno Drummond, só Nana é
capaz da canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças
A maior cantora, o maior time. Só que não
para todo mundo. O Flamengo tem a torcida; Anitta, o fã- clube. O Fluminense, a
história; Xuxa, mais discos vendidos. O Vasco tem mais garra; Elis, voz mais
potente. Mas, com a licença do vascaíno Drummond, só Nana é capaz da canção que
faça acordar os homens e adormecer as crianças. Com a devida vênia do
flamenguista Arnaldo Jabor, todos os outros times são prosa; o Botafogo é
poesia.
Nana Caymmi e o Botafogo estão juntos aqui porque carregam, cada um a seu modo, uma elegante melancolia em preto e branco. Por gloriosos que sejam, cultivam glórias passadas. Flertam com o abismo.
Quem, a não ser o Botafogo, perderia o título
mais ganho da história do futebol? Quem, senão Nana, teria tido a ideia de dar
a um disco de boleros (boleros em pleno ano 2000!) o título de “Mi último
fracaso”? (A gravadora não deixou. A obra saiu como “Sangre de mi alma”. Os
torcedores bem que suaram sangue na arquibancada, e o time de alma trágica
fracassou no fim.)
Eles são assim, bemóis, outono — aquele dos
soluços longos dos violões, que enchem o coração de dor e abandono (versos de
Verlaine e Wisnik — este, um santista, mas o Santos é o Botafogo paulista,
assim como Manuel Bandeira era o Botafogo dos poetas, e Hilda Hilst sua Nana).
Temos as cantoras do rádio, da Jovem Guarda,
da fossa, da Bossa Nova, da MPB. As roqueiras, as baianas, as ecléticas. Do
samba, do funk, do feminejo. Nana é (olha o Botafogo aí de novo) uma estrela
solitária. Daquelas de lutar quando é fácil ceder.
Sabe a “fase popular”, de lançar discos com
canções “românticas” para alavancar as vendas? Pois é, toda cantora tem. Não,
Nana não teve. Romântico, no dialeto que só ela fala, é outra coisa. É Oh,
insensato coração/Por que me fizeste sofrer?. É Uma só noite de paz pra não
lembrar/Que eu não devia esperar/E ainda espero. É Me tira essa canseira/Me
tira essas olheiras/De esperar tanto tempo/A mudança dos ventos. É Não lance
nos meus/Esses olhos de mar/Que eu desisto do adeus/Pra me envenenar.
Seu maior sucesso não foi releitura de brega
ou obra de hit maker, mas uma resposta ao tempo, escrita por Aldir Blanc e
Cristóvão Bastos. E, na contramão de tudo, dedicou seus discos mais recentes a
Tito Madi, Tom e Vinícius.
Não sei que time seriam o conto, o romance, a
novela — mas a crônica é Botafogo. E Nana canta como ninguém os cronistas da
canção: Paulo César Pinheiro, Fernando de Oliveira, Cacaso, Peterpan, Chico
Buarque, Dolores Duran.
Pouco mais de um ano separa os nascimentos de
Nana (29 de abril de 41) e do Botafogo (dezembro de 42). Mas já éramos campeões
em 1907, e Nana começou a cantar ainda antes de nascer, quando Dorival se
encantou por Stella Maris, na Rádio Nacional.
Tentar calar o outro virou sinal de virtude,
e Nana continuou desbocada. Palavras matam, pronomes ofendem — e olha Nana fiel
ao palavrão, aquele que liberta.
Não sei por que time torce Nana Caymmi. Torço que seja o Botafogo, ela que faz com a voz e a canção o que Garrincha fazia com os pés e com a bola.
* Escrito no dia 1º de maio, antes que a
estrela solitária, cuja respiração também era música, deixasse de respirar.
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