sexta-feira, 30 de maio de 2025

Bloqueios da democracia - José de Souza Martins*

Valor Econômico

O Brasil está se confirmando como um país atrasado. Sem autenticidade em campos decisivos da sociedade moderna, mas autênticos na sociabilidade conflitiva fundada no ódio

Nestes dias em que tem andamento o exame das denúncias de tentativa de golpe de Estado em eventos relacionados com a eleição presidencial de 2022 e suas decorrências em 2023, as revelações dizem que fomos transformados em subcidadãos de um país-fantasma.

O Brasil está se confirmando como um país atrasado. Somos um país pós-moderno sem termos sido antes um país moderno. Consumidos pelo equívoco de que somos competentes porque imitadores e copistas. Sem autenticidade em campos decisivos da sociedade moderna: na economia, na política, nas religiões. Mas autênticos na sociabilidade conflitiva fundada no ódio. Somos inimigos de nós mesmos.

Porém, somos muito bons na arte, no teatro, na escultura, na pintura, na música, na literatura, nas ciências, na indústria. Na indústria já fomos mais criativos do que somos hoje. Quando os sabichões diziam que éramos e deveríamos continuar a ser um país de vocação agrícola, gente sem visibilidade inventava fábricas eficientes.

Quando houve a crise econômica de 1929, a política de compra dos estoques encalhados de café para queimar e manter ativo o fluxo de renda e emprego foi um sucesso porque o país tinha um sistema industrial instalado e já substituía suas importações.

Nossas escolas de engenharia, inclusive militares, tinham formado uma elite de técnicos e cientistas desde final do século XIX capazes de encontrar soluções alternativas para a falta de fornecimento de bens de capital. Escolas profissionais formavam operários qualificados.

Trabalhei em fábrica quando criança e adolescente. Na infância, numa fábrica com máquinas inventadas e produzidas por um ferramenteiro que continuava operário enquanto sua mulher e eu éramos o seu proletariado.

Na adolescência, numa fábrica de Roberto Simonsen, em São Caetano, havia no pátio uma enorme hélice de navio, arrematada num leilão. Era de onde vinha a matéria-prima para fabricação de estampos e ferramentas. Muitas fábricas criadas no Brasil desde o quarto final do século XIX eram fábricas de bens de consumo que produziam seus próprios bens de capital. Fábricas de fábricas.

Historicamente, no entanto, somos um país “oficialmente” capitalista. Porém disfuncional e anticapitalista porque, ideologicamente, país de capitalismo retrógrado, baseado em expedientes obscuros, para dizer o mínimo, de lucros extraordinários. Caso da utilização, em certos setores, do trabalho escravo ainda hoje. Caso, também, da devastação ambiental, do destruir para lucrar sem criar nem produzir.

O Brasil tem duas anomalias de origem. Como ressaltou o professor Fernando Henrique Cardoso, num artigo científico de 1971, o Brasil é o único país da América Latina que se tornou independente sem ter feito uma revolução da independência. Aqui, o herdeiro da Coroa proclamou a independência do que fora colônia, sem participação do povo. Não foi a sociedade civil que criou o Estado, mas o Estado criou a sociedade civil. Uma sociedade de dominações.

A segunda anomalia foi a Lei de Terras, de 1850. Para compensar os senhores de escravos pelo fim do tráfico negreiro e o fim próximo da escravidão, o Estado subverteu o regime de propriedade. Transferiu o domínio da terra ao senhor de escravos em vez de libertar os escravos e dar-lhes terra de seu trabalho. Criou o direito absoluto de propriedade. Abdicou do domínio sobre o território.

Só aos poucos, o Estado brasileiro tenta reaver esse domínio reduzindo a propriedade ao solo, dele separando o direito ao subsolo - o das águas, das minas.

A ditadura militar de 1964 implantou uma política econômica de estímulos fiscais que possibilitou ao capital, na ampla expansão da fronteira econômica, em detrimento das populações originárias, transformar-se em proprietário de terra com dinheiro público, um anômalo capitalismo rentista e especulativo. Em vez de realizar uma reforma territorial de natureza social, no reconhecimento dos direitos imemoriais dos indígenas à sua terra e ao direito do trabalhador à sua terra de trabalho.

O capital para lucrar precisa produzir. A propriedade da terra não precisa produzir para ter renda e ganho. É parasitária e especulativa, lucra indiretamente.

Essas anomalias históricas criaram um capitalismo anticapitalista, de desenvolvimento econômico sem desenvolvimento social e sem desenvolvimento político. Uma sociedade de sujeições e cumplicidades, não uma sociedade democrática.

Quase nada escapa dessa herança bloqueadora do que poderíamos ser e não somos. A firmeza profissional do brigadeiro chamado pelo STF a depor como testemunha no processo de tentativa de golpe de Estado mostrou, no entanto, que o atraso tem contradições libertadoras na democracia de entrelinhas.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).

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