Valor Econômico
O Brasil está se confirmando como um país
atrasado. Sem autenticidade em campos decisivos da sociedade moderna, mas
autênticos na sociabilidade conflitiva fundada no ódio
Nestes dias em que tem andamento o exame das
denúncias de tentativa de golpe de Estado em eventos relacionados com a eleição
presidencial de 2022 e suas decorrências em 2023, as revelações dizem que fomos
transformados em subcidadãos de um país-fantasma.
O Brasil está se confirmando como um país atrasado. Somos um país pós-moderno sem termos sido antes um país moderno. Consumidos pelo equívoco de que somos competentes porque imitadores e copistas. Sem autenticidade em campos decisivos da sociedade moderna: na economia, na política, nas religiões. Mas autênticos na sociabilidade conflitiva fundada no ódio. Somos inimigos de nós mesmos.
Porém, somos muito bons na arte, no teatro,
na escultura, na pintura, na música, na literatura, nas ciências, na indústria.
Na indústria já fomos mais criativos do que somos hoje. Quando os sabichões
diziam que éramos e deveríamos continuar a ser um país de vocação agrícola,
gente sem visibilidade inventava fábricas eficientes.
Quando houve a crise econômica de 1929, a
política de compra dos estoques encalhados de café para queimar e manter ativo
o fluxo de renda e emprego foi um sucesso porque o país tinha um sistema
industrial instalado e já substituía suas importações.
Nossas escolas de engenharia, inclusive
militares, tinham formado uma elite de técnicos e cientistas desde final do
século XIX capazes de encontrar soluções alternativas para a falta de
fornecimento de bens de capital. Escolas profissionais formavam operários
qualificados.
Trabalhei em fábrica quando criança e
adolescente. Na infância, numa fábrica com máquinas inventadas e produzidas por
um ferramenteiro que continuava operário enquanto sua mulher e eu éramos o seu
proletariado.
Na adolescência, numa fábrica de Roberto
Simonsen, em São Caetano, havia no pátio uma enorme hélice de navio, arrematada
num leilão. Era de onde vinha a matéria-prima para fabricação de estampos e
ferramentas. Muitas fábricas criadas no Brasil desde o quarto final do século
XIX eram fábricas de bens de consumo que produziam seus próprios bens de
capital. Fábricas de fábricas.
Historicamente, no entanto, somos um país
“oficialmente” capitalista. Porém disfuncional e anticapitalista porque,
ideologicamente, país de capitalismo retrógrado, baseado em expedientes
obscuros, para dizer o mínimo, de lucros extraordinários. Caso da utilização,
em certos setores, do trabalho escravo ainda hoje. Caso, também, da devastação
ambiental, do destruir para lucrar sem criar nem produzir.
O Brasil tem duas anomalias de origem. Como
ressaltou o professor Fernando Henrique Cardoso, num artigo científico de 1971,
o Brasil é o único país da América Latina que se tornou independente sem ter
feito uma revolução da independência. Aqui, o herdeiro da Coroa proclamou a
independência do que fora colônia, sem participação do povo. Não foi a
sociedade civil que criou o Estado, mas o Estado criou a sociedade civil. Uma
sociedade de dominações.
A segunda anomalia foi a Lei de Terras, de
1850. Para compensar os senhores de escravos pelo fim do tráfico negreiro e o
fim próximo da escravidão, o Estado subverteu o regime de propriedade.
Transferiu o domínio da terra ao senhor de escravos em vez de libertar os
escravos e dar-lhes terra de seu trabalho. Criou o direito absoluto de
propriedade. Abdicou do domínio sobre o território.
Só aos poucos, o Estado brasileiro tenta
reaver esse domínio reduzindo a propriedade ao solo, dele separando o direito
ao subsolo - o das águas, das minas.
A ditadura militar de 1964 implantou uma
política econômica de estímulos fiscais que possibilitou ao capital, na ampla
expansão da fronteira econômica, em detrimento das populações originárias,
transformar-se em proprietário de terra com dinheiro público, um anômalo
capitalismo rentista e especulativo. Em vez de realizar uma reforma territorial
de natureza social, no reconhecimento dos direitos imemoriais dos indígenas à
sua terra e ao direito do trabalhador à sua terra de trabalho.
O capital para lucrar precisa produzir. A
propriedade da terra não precisa produzir para ter renda e ganho. É parasitária
e especulativa, lucra indiretamente.
Essas anomalias históricas criaram um
capitalismo anticapitalista, de desenvolvimento econômico sem desenvolvimento
social e sem desenvolvimento político. Uma sociedade de sujeições e
cumplicidades, não uma sociedade democrática.
Quase nada escapa dessa herança bloqueadora
do que poderíamos ser e não somos. A firmeza profissional do brigadeiro chamado
pelo STF a depor como testemunha no processo de tentativa de golpe de Estado
mostrou, no entanto, que o atraso tem contradições libertadoras na democracia
de entrelinhas.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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