segunda-feira, 5 de maio de 2025

Mussolini inspira esquerda e direita – Miguel de Almeida

O Globo

O espanto deixado por Antonio Scurati nos seus leitores é a proximidade das ideias e práticas de Benito Mussolini com o universo político contemporâneo

Ao final da estupenda trilogia de Antonio Scurati sobre Benito Mussolini, um misto de espanto e encanto fica gravado no leitor. “M — Os últimos dias da Europa” encerra a narrativa da triste epopeia quando flagra o ditador italiano, entre a vaidade e a covardia, transformado em capacho de Adolf Hitler. Armado de retórica trágica, em cada parágrafo, sob a poesia de desabamento, Scurati constrói um personagem sempre fadado ao atoleiro, mesmo se vitorioso, ou em queda no precipício, se em desespero.

Não há escapatória para o Mussolini de Scurati — a conquista também é o passaporte de seu cadafalso. O autoengano surge disfarçado de estratégia política, de esperteza ideológica. Disposto a ser um César romano, será apenas um oportunista seminal e lúgubre da História.

Antes elogiado por Churchill, que o derrotou depois de ele se aliar ao ditador alemão, Mussolini encarna a tragédia política do século passado. Começa socialista, termina nazifascista. De um extremo a outro sem intervalo, onde a incoerência é aparato da amoralidade, quase seu sinônimo. É um jornalista de texto vibrante, polemista incansável. Ao ser execrado pelos companheiros de esquerda, funda seu movimento direitista. Com o ato, procura o reconhecimento intelectual e afetivo capaz de compensar seu constante sentimento de abandono e substitui a baixa estima pela virulenta arrogância e violência anticomunista. Não há ética, é apenas o gesto político de um animal ferido; o poder nada mais é que um bálsamo diante das frustrações.

Encontra nas amantes, mais jovens e mais ricas, o consolo afetivo paradoxalmente não preenchido por suas conquistas políticas, quando é incensado pelas massas a quem oferece um futuro espelhado no passado glorioso do Império Romano. (Trump? Bolsonaro?). Morrerá ao lado de uma delas, Clara Petacci. Mas deve a Margherita Sarfatti seu verniz de sofisticação. Bronco, analfabeto cultural, sem modos ou lustro, receberá da rica judia veneziana as instruções para estar na sociedade. Por seu intermédio virá a convivência com a aristocracia, escritores e artistas. Sarfatti teoriza e organiza o Novecento Italiano, com o pintor Mario Simoni e o grande Umberto Boccioni, entre outros. Mussolini aproveita o brilho social e intelectual da amante. Ao contrário de seu futuro aliado, Adolf Hitler, admira a arte moderna e seus recursos como a fotomontagem. É uma paixão de resultados — Sarfatti o ensina a usar os talheres e os copos adequados à mesa.

Também é uma paixão trágica. E oportunista. Até então modelo político para Hitler, que o imita até na formação de milícias para espancar os adversários e, ao final, o inspira na grotesca coreografia de gestos, Mussolini passa a imitar o imitador. Torna-se antissemita e edita leis raciais, para desespero de muitos de seus apoiadores e amigos judeus. Entre eles, Sarfatti, obrigada a abandonar o leito do ditador e buscar refúgio na América do Sul. Não sem antes deixar sua filha Fiammetta como refém na Itália; era uma garantia de que sua mãe (judia) não escandiria a relação com o ditador (agora racista). Safartti só voltará do exílio no final da década de 1940, depois de Hitler meter uma bala na cabeça e Mussolini ser morto e pendurado de ponta-cabeça em praça pública ao lado de outros fascistas (Petacci inclusive).

O espanto deixado por Scurati em seus leitores é a proximidade das ideias e práticas de Mussolini com o universo político contemporâneo. Entre muitos exemplos, os argumentos das Leis Raciais, de 1938. À sombra do Ministério da Cultura Popular, a seu pedido, um grupo de intelectuais fascistas lança o documento “O fascismo e o problema da raça”. Estabelecem: “As raças humanas existem. A existência das raças humanas já não é uma abstração do nosso espírito, mas corresponde a uma realidade fenomênica, material, perceptível aos nossos sentidos”. E mais: “O conceito de raça é um conceito puramente biológico”. Chocante atualidade.

Scurati recorre a documentos, diários dos personagens e fonogramas na construção da narrativa. Depois de se unir ao nazismo, como fantoche e coadjuvante, com a vaidade ultrajada, sem munição para entrar na guerra, Mussolini busca influenciar o ditador alemão. E grafa mensagem: “O dia que tivermos demolido o bolchevismo (…) será então a vez das grandes democracias”. Desde então, o socialismo foi enterrado. Apostas? “O povo é uma puta e se deita com o macho que vence”, vaticinou o italiano antes de ser morto e apedrejado pela turba que o amou.

Nenhum comentário: