O Globo
O espanto deixado por Antonio Scurati nos
seus leitores é a proximidade das ideias e práticas de Benito Mussolini com o
universo político contemporâneo
Ao final da estupenda trilogia de Antonio
Scurati sobre Benito Mussolini, um misto de espanto e encanto fica gravado no
leitor. “M — Os últimos dias da Europa” encerra a narrativa da triste epopeia
quando flagra o ditador italiano, entre a vaidade e a covardia, transformado em
capacho de Adolf Hitler. Armado de retórica trágica, em cada parágrafo, sob a
poesia de desabamento, Scurati constrói um personagem sempre fadado ao
atoleiro, mesmo se vitorioso, ou em queda no precipício, se em desespero.
Não há escapatória para o Mussolini de Scurati — a conquista também é o passaporte de seu cadafalso. O autoengano surge disfarçado de estratégia política, de esperteza ideológica. Disposto a ser um César romano, será apenas um oportunista seminal e lúgubre da História.
Antes elogiado por Churchill, que o derrotou
depois de ele se aliar ao ditador alemão, Mussolini encarna a tragédia política
do século passado. Começa socialista, termina nazifascista. De um extremo a
outro sem intervalo, onde a incoerência é aparato da amoralidade, quase seu
sinônimo. É um jornalista de texto vibrante, polemista incansável. Ao ser
execrado pelos companheiros de esquerda, funda seu movimento direitista. Com o
ato, procura o reconhecimento intelectual e afetivo capaz de compensar seu constante
sentimento de abandono e substitui a baixa estima pela virulenta arrogância e
violência anticomunista. Não há ética, é apenas o gesto político de um animal
ferido; o poder nada mais é que um bálsamo diante das frustrações.
Encontra nas amantes, mais jovens e mais
ricas, o consolo afetivo paradoxalmente não preenchido por suas conquistas
políticas, quando é incensado pelas massas a quem oferece um futuro espelhado
no passado glorioso do Império Romano. (Trump? Bolsonaro?). Morrerá ao lado de
uma delas, Clara Petacci. Mas deve a Margherita Sarfatti seu verniz de
sofisticação. Bronco, analfabeto cultural, sem modos ou lustro, receberá da
rica judia veneziana as instruções para estar na sociedade. Por seu intermédio
virá a convivência com a aristocracia, escritores e artistas. Sarfatti teoriza
e organiza o Novecento Italiano, com o pintor Mario Simoni e o grande Umberto
Boccioni, entre outros. Mussolini aproveita o brilho social e intelectual da
amante. Ao contrário de seu futuro aliado, Adolf Hitler, admira a arte moderna
e seus recursos como a fotomontagem. É uma paixão de resultados — Sarfatti o
ensina a usar os talheres e os copos adequados à mesa.
Também é uma paixão trágica. E oportunista.
Até então modelo político para Hitler, que o imita até na formação de milícias
para espancar os adversários e, ao final, o inspira na grotesca coreografia de
gestos, Mussolini passa a imitar o imitador. Torna-se antissemita e edita leis
raciais, para desespero de muitos de seus apoiadores e amigos judeus. Entre
eles, Sarfatti, obrigada a abandonar o leito do ditador e buscar refúgio na
América do Sul. Não sem antes deixar sua filha Fiammetta como refém na Itália; era uma
garantia de que sua mãe (judia) não escandiria a relação com o ditador (agora
racista). Safartti só voltará do exílio no final da década de 1940, depois de
Hitler meter uma bala na cabeça e Mussolini ser morto e pendurado de
ponta-cabeça em praça pública ao lado de outros fascistas (Petacci inclusive).
O espanto deixado por Scurati em seus
leitores é a proximidade das ideias e práticas de Mussolini com o universo
político contemporâneo. Entre muitos exemplos, os argumentos das Leis Raciais,
de 1938. À sombra do Ministério da Cultura Popular, a seu pedido, um grupo de
intelectuais fascistas lança o documento “O fascismo e o problema da raça”.
Estabelecem: “As raças humanas existem. A existência das raças humanas já não é
uma abstração do nosso espírito, mas corresponde a uma realidade fenomênica,
material, perceptível aos nossos sentidos”. E mais: “O conceito de raça é um
conceito puramente biológico”. Chocante atualidade.
Scurati recorre a documentos, diários dos
personagens e fonogramas na construção da narrativa. Depois de se unir ao
nazismo, como fantoche e coadjuvante, com a vaidade ultrajada, sem munição para
entrar na guerra, Mussolini busca influenciar o ditador alemão. E grafa
mensagem: “O dia que tivermos demolido o bolchevismo (…) será então a vez das
grandes democracias”. Desde então, o socialismo foi enterrado. Apostas? “O povo
é uma puta e se deita com o macho que vence”, vaticinou o italiano antes de ser
morto e apedrejado pela turba que o amou.
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