O Globo
O recado final de quem fez da Amazônia seu
último projeto e que nos alertou para o privilégio de ter esta floresta
Sebastião
Salgado permanecerá porque sua obra seguirá mostrando as dores agudas
ou a exuberante beleza do planeta. Extremos de vida. Para ele, a vida era em
preto e branco e nunca em meios-tons. Ficará de pé também o pedaço que
replantou da outrora dominante Mata Atlântica, hoje recolhida a alguns
recantos, como o que ele e Lélia construíram. Nesta semana, o contraste entre a
mensagem que ele quis deixar e o que temos feito será mais gritante. A Câmara
pretende votar em regime de urgência o PL da devastação nos próximos dias.
É truque dos apoiadores do projeto. Depois desta, virá a semana do Meio Ambiente. No dia 5 de junho, uma quinta-feira, será o Dia do Meio Ambiente. Os defensores do projeto acham que não cairá bem aprová-lo nessa data e, por isso, querem correr.
Durante a pandemia, em 2021, eu pedi uma
entrevista a Sebastião para o livro que estava escrevendo. Liguei na hora
marcada e ele me deu uma aula sobre vários povos que visitara na Amazônia.
Ele havia me dito, anos antes, em 2013, quando o acompanhei na visita aos Awá
Guajá, que “Amazônia” seria seu último projeto. Explicou que ia trabalhar por
dez anos e depois disso teria perto de 80, não teria forças para novo projeto.
Acabou concluindo o “Amazônia” em menos de uma década, mas ele sabia marcar o
tempo da vida. Morreu aos 81 anos.
Naquela conversa de 2021, ele falou do que
tentava mostrar ao Brasil ao escolher o tema do último trabalho.
“Quando se está vivendo nas comunidades
indígenas a gente tem noção de estar no maior espaço cultural do planeta. Cada
povo tem uma história, uma vivência, uma experiência, uma língua, uma origem. E
tudo isso é muito dinâmico. Em todos esses anos que passei indo à Amazônia
descobri que o maior grupo de riqueza cultural, o maior grupo de experiências
de vida que frequentei em todo o planeta são os povos da Amazônia. O Brasil tem
esse privilégio. É o único país que pode conviver com a pré-história da humanidade.
Dentro da Amazônia brasileira nós temos em torno de 102 grupos que nunca foram
contactados. Os brasileiros tinham que ter consciência disso, que eles têm essa
riqueza incrível. Que essas comunidades não são inferiores a nada do que se tem
em outras áreas do Brasil, seja em vigor físico, em beleza, em disposição de
vida, em cultura, em riqueza de línguas. Temos que transmitir isso para o povo
brasileiro. Preservar isso para as gerações futuras do planeta inteiro.”
Ele escolheu entregar a nós, brasileiros, seu
povo, a última mensagem com o seu projeto “Amazônia”. Há momentos em que parece
que vamos entender o privilégio de ter essa floresta. Em outros momentos, como
na semana passada, quando o Senado aprovou o PL do licenciamento, tudo
desmorona. O projeto não flexibiliza, ele ataca a legislação ambiental. Ele
cria o ambiente no qual os lobbies podem prosperar e a corrupção crescer. O PL,
como votado no Senado, cria um tipo especial de licença. Rápida, vantajosa, sem
critérios claros. Entra nessa trilha veloz o projeto considerado estratégico.
Quem decidirá o que é estratégico? Será uma escolha política. Valerá ouro ser
escolhido.
Há outras aberrações nesse projeto cujo
melhor destino seria o veto total. Ninguém se ilude sobre a capacidade da
Câmara de rejeitá-lo ou de melhorá-lo. Pode piorar. O PL ameaça a Amazônia, mas
não só, ameaça o Cerrado, mas não só, ameaça a Mata Atlântica, o Pampa, o
Pantanal. Ameaça o Brasil e sua diversidade. Ameaça nos cobrir de vergonha na
COP30.
Meses depois dessa conversa para o livro,
ainda em 2021, eu o entrevistei na GloboNews. Ele em Paris e eu no Rio. Ainda
era pandemia. De novo ele mostrou o encantamento com a floresta e seus povos.
Apesar de ser no obscuro tempo da Covid e do governo antiambiental da época,
Sebastião estava otimista num ponto. Acreditava que a consciência ambiental
tinha avançado no mundo. Esse retrocesso que vivemos em 2025 é fora de tempo e
lugar.
Uma vez fiz uma entrevista com ele no
Instituto Terra. Trabalhosa. Andamos ele, Lélia e eu pela mata replantada por
eles em Aimorés. Na hora de ir embora, o erro de um integrante da equipe apagou
o material. Eu tive que pedir uma nova entrevista. Ele não só aceitou refazer a
gravação, como ainda brincou para desfazer nosso constrangimento. Se pudesse,
agora eu pediria uma nova conversa, só para dizer: obrigada, Sebastião, pelo
que me ensinou. Não vou esquecer, meu amigo.
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