DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
"Luiz Inácio falou, Luiz
Inácio avisou, são 300
picaretas com anel de doutor"
"Luiz Inácio falou, Luiz
Inácio avisou, são 300
picaretas com anel de doutor"
Herbert Viana, "Luiz Inácio
(300 Picaretas)"
O mundo escandalizou-se com a violência que Hugo Chávez vem de cometer contra o Congresso venezuelano, porque é de fato um escândalo - um atentado contra a democracia - e porque é fácil se escandalizar com Chávez - ele parece o que é, um tipo truculento. Lula cometeu violências parecidas e ninguém se escandalizou tanto, porque ele, afinal, parece um bom sujeito - filho do povo, operário, etc. - e pouca gente presta atenção no Congresso brasileiro, salvo quando o escândalo é no próprio Congresso.
Chávez obteve do atual Congresso uma delegação legislativa que praticamente anula os poderes do próximo Congresso, onde haverá alguma oposição. Lula usou e abusou de medidas provisórias (MPs) para mais facilmente neutralizar a oposição e legislar por cima do Congresso numa extensão sem precedentes.
Qual a diferença? O instituto da delegação legislativa cabe em Constituições democráticas. O da medida provisória, tenho dúvidas. Mas o perigo não está tanto nas instituições quanto no modo de usá-las.
A Constituição brasileira (artigo 68) manda que a delegação legislativa especifique "o conteúdo e os termos de seu exercício" e proíbe delegação sobre matéria reservada a lei complementar, organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, direitos fundamentais e Orçamento. A delegação obtida por Chávez é uma aberração por causa da amplitude: deixa-o legislar por decreto sobre quase tudo nos próximos dois anos.
Os presidentes brasileiros não recorrem à delegação legislativa porque não precisam. Por que se dar ao trabalho de pedir ao Congresso uma delegação limitada, se o presidente pode legislar muito mais amplamente por MP?
Na letra e, talvez, no espírito da Constituição (artigo 62), a medida provisória era para ser, claro, provisória: caducaria se não fosse aprovada pelo Congresso em 30 dias. Virou permanente quando o Congresso e o STF aceitaram a prática da reedição. A Emenda Constitucional n.º 32, de 2001, resultou pior que o soneto. Acabou com a reedição, mas deixou aberta a porta para perenizar a MP não aprovada ou mesmo rejeitada. Se em 60 dias o Congresso não regular seus efeitos por decreto legislativo, eles permanecem válidos.
A Constituição proíbe a edição de MP sobre os assuntos vedados à delegação legislativa, inclusive matéria orçamentária. Com uma exceção: é permitida a abertura de créditos extraordinários por MP. Lula aproveitou essa brecha para abrir créditos suplementares, chamando-os de extraordinários. A diferença é clara: extraordinário é o crédito para atender a uma despesa imprevista e inadiável, como o socorro a uma calamidade. Suplementar é o crédito correspondente a qualquer remanejamento que o governo resolva fazer no Orçamento. A confusão propositada revogou, na prática, a regra de que o Executivo só pode fazer despesas previamente autorizadas pelo Legislativo.
A Constituição prevê a instalação de uma comissão especial para analisar cada medida provisória. Essas comissões nunca são instaladas. A discussão, incluindo a negociação de emendas, é feita a portas fechadas, sem registro oficial, entre o governo, o relator da medida, outros parlamentares e partes interessadas que tenham acesso privilegiado ao relator e/ou ao governo. Assim outro princípio fundamental da vida parlamentar - o da discussão pública das matérias - foi para o espaço.
Que Lula tenha avançado tanto sobre os poderes do Congresso é fácil de entender. Avançou porque pôde. Desde a declaração sobre os "300 picaretas" até o mensalão, nunca escondeu seu desprezo pelo Congresso. Por que perderia tempo preocupando-se com o equilíbrio dos Poderes? Firula de doutores? De resto, ele sempre pareceu aceitar a contragosto a necessidade de dividir o poder presidencial com quem quer que fosse - Legislativo, Judiciário, agências reguladoras, imprensa?
E o Congresso, por que se deixou violar sem espernear? Talvez porque a maioria do Congresso também não ligue para firulas constitucionais. A regra da velha política parlamentar sempre foi ceder prerrogativas gerais do mandato em troca de favores especiais do governo. Houve um tempo em que Lula e o PT vituperavam os "picaretas" ou "fisiológicos". Hoje vituperam os "udenistas" que criam caso por bobagens como legalidade e moralidade. Se de fato existiam 300 picaretas no Congresso, com Lula eles ganharam o interlocutor perfeito no Executivo e perderam a cerimônia. A Venezuela não é aqui. Lula desmoralizou o Congresso, rosnou contra a liberdade de imprensa, atiçou milícias sindicalistas contra a oposição, mas não botou a tropa propriamente dita na rua, como Chávez. Tampouco parece haver por aqui tropa disposta a marchar contra as instituições democráticas. Ótima notícia, considerando nosso passado.
A democracia, mesmo enxovalhada, sobreviveu aos oito anos de Lula. Mas a perspectiva de mais quatro anos da mesma política é preocupante. A confiança do povo no Congresso, nos partidos e nos políticos não para de cair nas pesquisas de opinião. O neofisiologismo lulista é feito caruncho roendo por dentro a legitimidade das instituições. Quanto tempo elas aguentam sem ser golpeadas pelo vento mais forte de uma crise?
Não vejo em Dilma Rousseff, seu governo e sua base parlamentar - muito menos em seu mentor - interesse em reverter tal processo. Isso aumenta a responsabilidade da oposição. Se lhe falta número para barrar a nova-velha política no Congresso, deve ao menos espernear com toda a força. E buscar apoio ativo dos cidadãos - que não são tão poucos - preocupados com a democracia.
Cientista político, foi Secretário-Geral da Presidência da República (governo FHC).
Nenhum comentário:
Postar um comentário