Estamos em tempos de conciliação política e consequente revalorização da importância do Plano Real na História do país. O reconhecimento da presidente Dilma Rousseff do papel fundamental do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no fim da hiperinflação e consequente estabilização econômica, que permitiu a retomada do planejamento para o desenvolvimento do país, e os generalizados aplausos na morte do ex-presidente Itamar Franco, reconhecido como o responsável pela implantação do Plano Real, fazem parte desse novo cenário que recupera a História do Brasil.
Não é por acaso, portanto, que o excelente livro de Miriam Leitão "Saga brasileira, a longa luta de um povo por sua moeda" está em primeiro lugar na lista dos mais vendidos no país há seis semanas seguidas.
Além da sua qualidade intrínseca, o livro chega numa hora em que o país redescobre seu passado, abafado há quase dez anos por campanha política negacionista que tinha o fim único de exaltar o governo petista pela anulação dos méritos de governos anteriores.
Pura tática marqueteira que deu certo até que dois acontecimentos tiveram a capacidade de destampar o passado recente: os 80 anos de FH e a morte de Itamar.
Ele e Fernando Henrique, corresponsáveis pela mais exitosa ação político-econômica do Brasil moderno, foram separados pela disputa política, mas nunca chegaram a romper, como aconteceu com Lula e FH.
A tradicional disputa entre criador e criatura deu-se mais uma vez. Mas, se dependesse de Itamar, o candidato do Plano Real teria sido o então ministro da Previdência, Antonio Britto, hoje afastado da política partidária e presidindo a Abifarma.
E não há dúvidas de que Itamar levou para o túmulo mágoas que seu espírito trêfego não conseguia superar, como a certeza de que sua importância na História do país havia sido reduzida pelo protagonismo de Fernando Henrique, a quem não perdoava por ter aprovado a reeleição quando ele, Itamar, considerava-se no direito de ser o candidato à sucessão.
A partir de então, passou a confrontar Fernando Henrique, primeiro tentando ser o candidato do PMDB contra a reeleição de sua "criatura". Foi humilhado pela direção nacional do PMDB na convenção nacional, que decidiu apoiar a reeleição.
Um depoimento isento é o do ex-ministro da Fazenda Rubem Ricupero, que afirma que a importância de Itamar para a estabilização da economia foi decisiva porque, naquele momento de transição, ele era o único que acreditava que seria possível dar um golpe definitivo na inflação.
Mas Ricupero sabe que Itamar não "tinha uma ideia clara" de como fazer isso e andava em busca de um novo Plano Cruzado. "Inclusive, depois que o real foi introduzido, Itamar ainda queria um congelamento de preços", lembra Ricupero em entrevista à BBC.
Por diversas vezes o ex-presidente Itamar o classificou como o "sacerdote" ou "apóstolo" do Real, mas Ricupero desconfia que "ele fazia isso principalmente para retirar um pouco do crédito pelo Plano Real da equipe de Fernando Henrique Cardoso."
Havia muita mágoa. Itamar era político interessante, imprevisível, reagia espontaneamente a tudo, tinha algumas ideias fixas - umas bem atrasadas como um nacionalismo que não se modernizou: era contra todas as privatizações, embora tenha sido no seu governo que a CSN foi privatizada.
A ideia do relançamento do fusca não tinha cabimento, mas embutia a proposta de um carro popular, o que mais tarde foi feito com carros economicamente viáveis.
Ele tem todos os méritos por permitir que o Plano Real se efetivasse, mas durante sua gestação várias vezes atrapalhou, como quando quis o congelamento de preços a que se referiu Ricupero.
Seu sonho dourado era a popularidade que o Plano Cruzado trouxera ao ex-presidente José Sarney, e, se dependesse dele e de seus assessores, a República do Pão de Queijo, seriam tomadas medidas populistas que prejudicaram o Cruzado e inviabilizariam o Real.
Tinha uma visão política muito provinciana, mas tinha também vantagens competitivas que eram inerentes a seu caráter e formação, qualidades que infelizmente hoje são mais relacionadas a políticos à moda antiga, que morriam pobres como ele morreu, qualidades ressaltadas em um tempo em que poucos anos de atividade parlamentar, até mesmo a vereança, já levam políticos a ficarem milionários.
Conseguiu participar de um governo que foi impedido pelo Congresso por corrupção sem se envolver nas falcatruas, o que permitiu fazer a transição política para o governo FH.
Reuniu todos os partidos em torno dele, apenas o PT ficou de fora. Itamar tinha uma intuição política muito aguçada, que alguns consideravam apenas sorte, mas Tancredo Neves classificava de "destino".
Estava sempre no lugar certo na hora certa. Ser vice de Fernando Collor, tudo indicava, era estar no lugar errado naquela corrida presidencial de 1989, mas ele teve a intuição de que aquela aventura daria certo.
Collor tinha razões importantes para colocar um político como Itamar na vice, para dar credibilidade à sua candidatura.
Várias vezes o mercurial Itamar renunciou ao cargo durante a campanha, como um Jânio vice de outro Jânio.
Conseguiu se manter em posição de neutralidade durante o curto governo, o que não prejudicou sua carreira e, em vez de ter sido contaminado pelo que ocorria nos bastidores, soube se manter distante e se qualificou para comandar um governo de união nacional que foi fundamental para a realização do Plano Real.
FONTE: O GLOBO
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