Não
existe assimetria entre política externa e política de governo propriamente
dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão, a não ser
que haja um grande ajuste
A
posse do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, hoje, representa o
colapso da política externa do presidente Jair Bolsonaro, sem mais nem menos.
Seu apoio escancarado não somente à reeleição de Donald Trump, mas também às
denúncias de fraude eleitoral na eleição do democrata, bem como aos protestos
dos republicanos — que culminaram com a invasão do Capitólio — levou as
relações entre o Brasil e os Estados Unidos ao seu pior momento desde o governo
Geisel, durante o regime militar. Entramos num processo parecido com aquele
momento, marcado pela celebração do acordo nuclear com a Alemanha, pelo
presidente Ernesto Geisel, que rompeu um velho acordo militar com Estados
Unidos, em 1975.
Em
março 1978, quando o presidente democrata Jimmy Carter esteve no Brasil, foi
recebido friamente por Geisel, embora a visita, de iniciativa da Casa Branca,
fosse uma tentativa de melhorar as relações. Entretanto, não houve como deixar
fora da pauta do encontro a questão dos direitos humanos. Denúncias de
sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas nos quartéis e aparelhos
clandestinos dos serviços de inteligência do regime, devidamente
circunstanciadas, foram entregues à primeira-dama Rosalyn Carter, estressando
ainda mais as relações.
Na
época do estresse com os Estados Unidos, Geisel ainda encarnava um projeto
nacional-desenvolvimentista, que contava com certo apoio na sociedade, apesar
de o regime vir a ser derrotado fragorosamente nas urnas, em novembro do mesmo
ano. Agora, não existe projeto nacional algum. Ideologicamente, Bolsonaro se
aliou de forma incondicional ao presidente Donald Trump, que, agora, deixa o
governo, depois da sua frustrada tentativa de impedir a posse de Biden, numa
inopinada e brutal ação golpista, amplamente repudiada pelo Congresso e a
Justiça dos Estados Unidos. Como se dizia antigamente, Bolsonaro pegou o bonde
errado.
O fracasso da política externa de Bolsonaro é ainda mais grave porque o presidente brasileiro, ao se aliar a Trump, entrou em rota de colisão com a União Europeia, por causa da questão ambiental, e com a China, nosso principal parceiro, devido à guerra comercial entre os dois países. Até mesmo com a Índia e a África do Sul, que são nossos parceiros no Brics, Bolsonaro desgastou as relações diplomáticas, ao votar contra a quebra de patentes de produtos farmacêuticos na Organização Mundial de Comércio (OMC). Agora, o Brasil depende da importação de insumos farmacêuticos e vacinas desses países, que têm seus próprios interesses geopolíticos e nenhuma boa vontade com Bolsonaro.
Reflexos
internos
Grande
produtor de commodities de minérios e de alimentos, o Brasil tem um lugar
cativo na divisão internacional do trabalho que nos garante certa importância
na política internacional, mas a nossa atual política externa trabalha na
direção de anular essa vantagem estratégica. O resultado são dificuldades em
questões nas quais, tradicionalmente, nossa diplomacia contaria com a boa
vontade dos parceiros, por seu pragmatismo e habilidade nas negociações
multilaterais. Acontece que o multilateralismo e o globalismo viraram palavrão
no gabinete do chanceler Ernesto Araújo.
Como
se sabe, não existe assimetria entre política externa e política de governo
propriamente dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão,
a não ser que haja um grande ajuste, o que não está sendo sinalizado pelo
Palácio do Planalto. Uma pandemia é o tipo de problema cuja solução exige certo
nível de governança global e boa vontade entre os parceiros internacionais,
além do esforço próprio e local. No caso da covid-19, pela primeira vez, nossa
diplomacia virou problema em vez de solução. O resultado é que estamos tendo
dificuldades, por exemplo, para obtenção de insumos farmacêuticos necessários à
produção de vacinas tanto pelo Instituto Butantan (CoronaVac) quanto pela
Fiocruz (AstraZeneca-Oxford), agravadas pelos erros do Ministério da Saúde na
gestão da crise sanitária e negociações para comprar as vacinas.
A crise sanitária provocou uma crise econômica, cuja superação depende da vacinação em massa da população e não do “tratamento precoce” preconizado pelo presidente Jair Bolsonaro. Mesmo que a pandemia venha a ser contida — estamos numa segunda onda, com escassez de vacinas —, é preciso que medidas econômicas sejam adotadas para gerenciar o deficit fiscal, decorrente das medidas emergenciais adotadas durante a pandemia. Há que se ter, também, um programa de reformas que ajude a recuperação das atividades econômicas. Ocorre que o ministro da Economia, Paulo Guedes, vive numa eterna fuga pra frente, na qual essas medidas dependem sempre de um fato político novo. Desta vez, são as eleições das Mesas da Câmara e do Senado, nas quais o Palácio do Planalto aposta todas as fichas.
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