Iniciamos
a vacinação dentro de um campo politizado precisamente pela velha enfermidade
de um você sabe com quem está falando – o famoso “quem é que manda?!” – que
prolonga a doença e a morte
Considere
uma fotografia. Nela, você vê meninos, jovens e idosos, homens e mulheres.
Todos olham para a câmera sorrindo e logo você acha que se trata de uma
família.
Mas
só há um modo de confirmar suas intuições porque, se a foto exibe
contundentemente os indivíduos, ela não mostra o mais importante: as suas
relações.
Uma
visão mais precisa do quadro só pode ocorrer quando você, realizando um
trabalho parecido com o dos jornalistas, antropólogos e policiais, indagar quem
é quem e – nessa indagação – descobrir a teia invisível que liga esses
indivíduos entre si. Quando os elos são revelados, os indivíduos ganham
existência – são parte de um enredo.
Aquela
bela mulher é a mãe dos meninos; o sujeito engravatado é o seu ciumento marido;
aquele velho sorridente é o avô; aquela pessoa no fundo é a empregada...
*
Todos
nós aprendemos a ser quem somos por meio de relações centradas no nosso grupo
doméstico. Foi por meio de um código administrado pelos nossos pais – os “donos
da casa” – que aprendemos uma língua e o mudo. Esse código só é questionado nas
crises, pois o sistema da casa é tido como natural. Ele é hierárquico e
sustentado pelos axiomas morais de direitos e deveres (o “pode” ou “não pode”)
não escritos.
Descobrimos
a individualidade na “rua”, quando “levamos pau” na escola, brigamos, xingamos
e, sobretudo, namoramos, experimentando uma sexualidade vedada no lar. O mundo
da “rua” nos revela um outro lado. Nele, não somos exclusivos porque suas
regras são impessoais e, por isso, sempre surgem contra nós porque nos obrigam
a existir como anônimos e – eis o absurdo! – como iguais: desconhecidos e
comuns.
Contra elas, usamos as teias invisíveis da casa. O resultado é uma óbvia esquizofrenia (semente de corrupção, nepotismo e despotismo); e uma ambiguidade que cobra o seu alto preço contrariando os valores democráticos da vida pública.
*
Somos
“pessoas” em casa e “indivíduos” na rua. Como pessoas, temos os privilégios dos
nobres; como indivíduos, somos cidadãos sujeitos à lei. Como ficar vacinado
contra o uso dos elos pessoais na rua, afirmando que, mais do que pedestres,
somos netos de um desembargador ou filhos do presidente?
Se
somos “alguém”, como é que os outros não sabem quem realmente somos? O “você
sabe com quem está falando?” é um grito a favor de privilégios em situações
igualitárias.
No
Brasil, os regimes mudam, mas o “você sabe com quem está falando” permanece
cada vez mais atual. Ele se vitaliza na medida em que a demanda de igualdade
(que exige coerência) parece aumentar.
*
Mas
há uma grande resistência. O melhor exemplo é o estilo intolerante, incoerente
e grosseiro de um presidente que canibalizou pessoal e familisticamente um
cargo que pertence ao povo brasileiro e, por meio dele, bloqueia
questionamentos baseados na premissa democrática da igualdade. A razão do
estilo áspero, irracional e agressivo de Bolsonaro é um equivalente do você
sabe com quem está falando revelador de uma alergia à liberdade de imprensa –
esse aval da democracia.
Como
um anti-igualitário, Bolsonaro se assemelha a Trump, mas há uma notável
diferença. Lá, eles instituíram a igualdade republicana que até agora continua
nos seus valores; aqui, a igualdade republicana sofreu descontinuidades e ela é
formalmente válida ao lado de muitos mecanismos que sublinham os privilégios –
as leis privativas de certos cargos e segmentos.
*
Escolhendo
não escolher entre a casa e a rua, inventamos um estilo de vida minado por
contradições as quais eram harmonizadas por uma abusiva condescendência. Um
preguiçoso “deixa pra lá” que os meios de comunicação hoje denunciam por meio
de uma implacável transparência. Nela, vemos a permanente ambiguidade do
sistema.
*
Para
quem está faz tempo na estrada, parece claro que vivemos reinventando a
democracia, somente para sentir saudade do autoritarismo. Amamos as regras
universais no papel e para os outros, mas as odiamos na prática quando
descobrimos que a elas estamos sujeitos.
A
pandemia é ainda mais trágica porque ela não tem viés político. Exceto pela
gigantesca ausência de liderança adequada e humana, uma ausência resultante de
um irracional negacionismo. Mas o fato concreto é que o vírus desorganiza
hierarquias e obriga a neutralizar a nossa habitual desumanidade. Ela estampa o
dilema da ambiguidade relativa que mantém privilégios, mas, simultaneamente,
apresenta a cura.
*
Iniciamos
a vacinação dentro de um campo politizado precisamente pela velha enfermidade
de um você sabe com quem está falando – o famoso “quem é que manda?!” – que
prolonga a doença e a morte. E assim será até nos convencermos de que a cura
dos privilégios chega com a vacina da democracia – essa forma de organização
coletiva simples e frágil que, como os bons remédios, requer uma enorme
paciência, um exigente bom caratismo e um persistente bom senso.
*É antropólogo social e escritor, autor de ‘Fila e Democracia’
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