segunda-feira, 13 de março de 2023

Ricardo Henriques* - Investimentos sociais e qualidade dos gastos

O Globo

O aumento dos gastos sociais no início do novo governo reacendeu o debate macroeconômico frequentemente caracterizado, no Brasil, pela primazia das políticas fiscais restritivas diante do aumento da dívida pública. Por vezes, este debate é permeado por soluções frágeis ou com severas consequências, sobretudo em conjunturas de retração econômica provocadas por choques exógenos como a pandemia, por exemplo. Parte da solução para o equilíbrio entre a saúde fiscal e as necessidades da população passa pela qualificação do gasto público. Para isso, há dois instrumentos essenciais, mas incipientes aqui: monitoramento e avaliação.

Até temos políticas que, por circunstâncias específicas, passaram por esses processos (o Bolsa Família, por exemplo). No entanto, há tantas outras que nascem, vivem e morrem ou permanecem sem que saibamos se atingiram seus objetivos. Avaliações são centrais para aferir efetividade, bem como corrigir rumos da implementação, checar consistência das hipóteses e permitir ajustes de rota.

Para avançar, precisamos de um sistema institucional, técnico e político de avaliações estratégicas e periódicas da estrutura de gastos do governo. Uma prática que tem ganhado cada vez mais relevância, sobretudo em países desenvolvidos, chama-se Spending Review (revisão de gastos). Trata-se de um marcador institucionalizado de revisão frequente (não brusca), transparente e sistemático.

De acordo com um estudo de 2022 do FMI, 84% dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotavam práticas de Spending Review em 2020, quase o dobro dos 43% verificados em 2011. Os economistas José Roberto Afonso e Leonardo Ribeiro argumentam, em estudo de 2020, que uma das vantagens desta prática é evitar ajustes fiscais imediatistas fortemente reativos, posto que as revisões periódicas são realizadas com base no desempenho das políticas públicas.

Por outro lado, existem desafios a serem mencionados. Primeiro, cerca de 90% do orçamento federal é de despesas obrigatórias previstas em lei e revisá-lo solicitará fluída articulação política junto ao Congresso. Segundo, as implicações ao pacto federativo exigem afinada coordenação entre os entes federativos. Por fim, há a inércia institucional na administração pública. Segundo Lindblom, em estudo seminal de 1979, isso ocorre porque decisões tomadas no passado constrangem decisões futuras e limitam a adoção de novas políticas públicas, em particular as de natureza orçamentária, de que resultam mudanças apenas incrementais.

Além do mais, é importante lembrar que nem toda ação precisa, deve ou pode ser avaliada. Mas, entre as que devem sê-lo, cumpre assegurar que reúnam boas condições para que o Spending Review seja efetivo. Parte disso pode ser endereçado a partir do desenho da política, com uma teoria da mudança bem-feita que revele seu mapa de hipóteses e expectativas de incidência, criando parâmetros para a mensuração dos efeitos diretos e indiretos, de curto, médio e longo prazos. Adicionalmente, devemos dispor de sistemas de monitoramento robustos o suficiente para garantir ajustes ágeis na implementação. Exemplos relevantes no Brasil que podem nos inspirar são a Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, do Ministério do Desenvolvimento Social, e o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, do Ministério do Planejamento.

Vale frisar que esses esforços não devem ser vistos como o domínio da tecnocracia sobre a política. Conforme argumentam Gabriela Lotta e Pedro Abramovay no livro Democracia Equilibrista (2022), soluções para os problemas do país não podem sair apenas de “estatísticas e gráficos de técnicos muito qualificados”. Segundo os autores, é “a democracia, por meio da política, que escolhe os caminhos que o país deve tomar, enquanto as instituições republicanas, a burocracia técnica, oferecem os materiais para pavimentar as estradas que resultarão dessas escolhas”. Confeccionar um sistema institucionalizado de revisão e qualificação do gasto público é uma das formas de colocar isso em prática.

Felizmente, há bons sinais emitidos pelo novo governo, como a criação da Secretaria de Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas, no Ministério do Planejamento. No entanto, de nada adiantará a boa vontade do Executivo se não estiver sintonizado com o Congresso, atores políticos relevantes, a academia e a sociedade civil.

*Ricardo Henriques, economista, é superintendente-executivo do Instituto Unibanco e professor associado da Fundação Dom Cabral

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