quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Fúria, narcisismo e ofensas: o estranho mundo dos comentários - Wilson Gomes

Folha de S. Paulo

Informação e análise, em vez de servirem de esclarecimento, viram combustível para raiva

Há uma máxima destes novos tempos cuja inobservância inevitavelmente aumenta a taxa de infelicidade de quem ganha a vida publicando em jornais, revistas ou qualquer veículo de informação online: não leia os comentários. É um princípio que há quase 25 anos tenta ajudar aqueles que se dedicam a análises, críticas ou, simplesmente, como se diz hoje, à produção de conteúdos para consumo digital, a preservar algum contentamento e autoestima.

Essa máxima vale para qualquer assunto, mas especialmente para os que frequentemente dividem opiniões: futebol, política, religião, moral, celebridades ou até se um desconhecido deveria ceder seu lugar na janela do avião. Em resumo, a quase tudo, pois no verão de 2024 não há coisa que se ame mais do que odiar.

O crítico —seja da mídia tradicional ou dos novos canais digitais— publica sua análise e hesita: de um lado, deseja acompanhar a repercussão de seu trabalho; de outro, sabe que não deve olhar nos olhos da Medusa dos comentários. Se é sábio, contenta-se com as métricas ou com o retorno de interlocutores de confiança. Abrir a seção de comentários, porém, é reservado aos que aceitam o risco de descobrir que ilustres desconhecidos tiraram minutos de suas vidas para demonstrar o quanto o consideram canalha, estúpido, ignorante, incompetente, mal-intencionado, feio, chato e bobo —além de mais uma dúzia de predicados ofensivos que podem variar conforme o sexo, idade, cor, origem familiar ou geográfica e religião do autor da análise.

Mulheres, por exemplo, invariavelmente são atacadas com insultos que combinam alusões à promiscuidade e à aparência, temperados com todas as notas da sinfonia da misoginia. Ninguém é poupado. A regra é ferir, e o comentarista buscará em seu arsenal de ofensas os golpes que julga mais certeiros contra aquele "tipo de pessoa" a quem se dirige.

Quando estudante, cursei uma disciplina chamada "antropologia do insulto", que ainda me ajuda a compreender o comportamento em ambientes digitais. Uma ofensa bem-sucedida precisa ser calibrada para atingir exatamente onde dói. Principalmente porque ela precisa ser feita em público, uma vez que a humilhação diante de um coletivo é parte do sofrimento que se pretende infligir.

Toda ofensa é uma tentativa de degradação, um rebaixamento moral ou cognitivo. Frequentemente isso ocorre pela desumanização do outro (chamá-lo de burro, cavalo, cobra, galinha, cachorro etc.), pela atribuição de perversidades (fascista, genocida, antissemita, racista) ou pela acusação de imoralidade (vendido, conivente, falso, arrogante, conspirador).

Mas de onde vem essa paixão pela ofensa fácil a pessoas que não conhecemos, que nunca nos prejudicaram, por ideias que deliberadamente escolhemos consumir? E por que me sinto compelido a seguir perfis, ouvir comentaristas ou ler colunistas cujas visões sei que me irritam profundamente? Apenas para odiá-los de perto?

As disciplinas que estudam comportamentos e atitudes online ainda têm muito a avançar para desvendar essas dinâmicas digitais. Radicalização política, desintermediação jornalística, incentivos à agressividade por parte de grupos e plataformas, uma nova era de intolerância, a cultura do cancelamento, a crise epistêmica que substitui a confiança em especialistas por lealdade a líderes tribais, a exibição de virtudes e o narcisismo exacerbado —todos esses conceitos são ferramentas para tentar entender esse estranho mundo novo. Um mundo em que as pessoas buscam informação e análise, mas, em vez de usá-las para esclarecimento pessoal —tornando-se mais flexíveis e abertas—, convertem-nas em combustível para a própria raiva.

Essa fúria, por sua vez, alimenta o comentário impulsivo e agressivo, disparado como uma voadora, pé no peito do interlocutor, para puni-lo pelo intolerável crime de não confirmar as minhas lindas convicções e de se atrever a defender pontos de vista diferentes dos meus. Por que faria tal coisa, afinal, se não por seus inúmeros defeitos morais e intelectuais, que me sinto compelido a expor como a mais cristalina verdade, ainda que ele os receba como insultos?

Ao mesmo tempo, ao redigir o comentário, não apenas denuncio publicamente o quão burro e mal-intencionado é o meu interlocutor, mas também proclamo o quanto sou, por contraste, inteligente, moralmente superior, preciso e verdadeiro.

E, como se não bastasse, deixo claro que possuo a coragem daqueles que fazem questão de combater em público a imoralidade, a estupidez e o erro.

 

4 comentários:

Mais um amador disse...

Perfeito !

A título de exemplo do que analisa o colunista, para quem quiser conhecer, recomendo uma visita aos " espaços " de comentários do portal Metrópoles.

😊

Anônimo disse...

Excelente coluna!

Anônimo disse...

Ótima análise. Qualquer crítica a ela referenda todas as colocações nela postas.

ADEMAR AMANCIO disse...

Não sabia que no portal ''Metrópoles'' tivesse essa seção de comentários,meu computador trava todas as vezes que eu entro no site.