Folha de S. Paulo
Há sempre uma vítima, um infrator, uma
denúncia, a punição, e a convicção dos linchadores de que estão do lado da
virtude
Somos
todos soldadinhos de uma guerra disseminada. Armados até os dentes e certos
da justeza de nossa causa, somos os combatentes generosos e destemidos sem os
quais o mal prevaleceria no mundo. Às vezes, somos a última linha de defesa do
que é justo e sagrado; outras, estamos na vanguarda da batalha pela restauração
do bem.
O campo de batalhas em que nos batemos inclui mídias sociais, bancadas de telejornais, programas de rádio e podcasts, comentários na imprensa, debates acadêmicos, publicações literárias, discussões parlamentares, discursos públicos e tudo aquilo que um dia se chamou de esfera pública. O digital, como meio, recurso e arena, permeia tudo isso, mesmo quando conversas, declarações e publicações eventualmente ocorrem offline.
Do digital, herdamos a facilidade e a
flexibilidade de encontrar ou criar grupos por identificação, de nos
vincularmos a eles e, neles, forjarmos uma nova persona pública. Nunca estamos
realmente sós: sempre há uma tribo com a qual nos identificar, uma seita para
seguir, uma facção à qual pertencer.
Mas também nunca estamos presos por vínculos
definitivos. Nossas redes dispensam as complicações da convivência física ou os
incômodos de regras rígidas, frequência obrigatória ou formalidades de
inscrição. As pessoas se reúnem e se dispersam conforme causas emergem ou são
substituídas, de acordo com as injustiças e maldades que se destacam, e as
convocações para a guerra, que são uma constante da vida digital. Não são as
tribos que têm uma causa; são as causas que formam as tribos que vão à guerra
por elas.
Do universo digital também vem nossa atitude
básica. Estamos sempre furiosos, horrorizados, ultrajados e borbulhando de
indignação moral. Como a vida política foi inteiramente moralizada, a
tribalização se baseia em virtudes. Sentimo-nos compelidos a agir para
consertar um mundo moralmente quebrado —desde que juntos. Assim, acabamos todos
como soldadinhos da justiça, guerreiros morais.
E, com isso, vem o pacote completo do
combatente: inimigos, batalhas, turnos de vigia, medalhas por bravura, pelotões
de fuzilamento e a sensação reconfortante de ter irmãos de armas —ou
sororidade, quando for o caso.
Não é uma guerra de conquista, vale frisar.
Todos os conflitos que criamos e alimentamos hoje são interpretados como
guerras de reparação, expedições punitivas. Se chutamos, atiramos, pisamos ou
humilhamos, é porque estamos retaliando alguém que, em algum momento, cometeu
um erro.
Essa é uma guerra movida pelo ressentimento,
pelo desejo de infligir ao inimigo uma amostra da dor que supostamente ele, ou
algo que o representa, causou. Se não foi ele quem cometeu diretamente a
ignomínia, foi alguém de sua linhagem, seu gênero, sua religião, sua raça.
Sempre há alguém a ser punido, uma penitência a ser imposta, um exemplo moral a
ser dado para que a sociedade ande na linha e saiba que o tempo da retaliação
chegou.
Marcha-se
contra tudo, pois o que não falta no mundo são injustiças a serem punidas. Basta
que um vigilante identifique um infrator, e a ordem é clara: fogo no fascista.
Os vigilantes podem ser jornalistas, intelectuais, professores e até donos de
editoras, todos comprometidos com a nobre missão de melhorar o mundo, mesmo que
isso signifique ignorar deontologias profissionais.
Identificado e apresentado o mal, todos os
guerreiros da justiça têm a obrigação moral de participar da punição. E todos
os punidos têm a obrigação moral de aceitar, penitentes, as penas decretadas
pela sanha punitivista do coletivo moral, mesmo que incluam castigos extremos:
a impossibilidade de voltar a trabalhar no próprio ramo, a destruição completa
de sua reputação e o estigma de ser perpetuamente lembrado como um pária
desprezível, pois a memória digital é para sempre.
Não preciso nem dar exemplos do linchamento
moral desta semana. Todos sabem do que estou falando, porque todas as semanas
são iguais. Não importa mais nem sequer qual o conteúdo das batalhas que se
sucedem dia após dia neste momento em que tudo é política, e política não é
mais que moralismo. Apenas se trocam os atores; os papéis e a estrutura do
drama permanecem os mesmos.
Há sempre uma vítima, um infrator, uma
denúncia, a punição, um arrependimento público —geralmente seguido de mais
punição— e a convicção dos linchadores de que estão do lado da virtude.
"Desculpem o transtorno, estamos consertando moralmente o mundo",
dizem os cruzados morais de ar-condicionado após mais uma jornada da sua guerra
santa.
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