Para Glauber Braga, deputado federal
fluminense de esquerda, ameaçado de cassação política pelo chorume da política
nacional, o consórcio fascismo/neoliberalismo/centrão.
A primeira leitura do quadro brasileiro de nossos dias leva analistas da vida
política a reduzir o avanço da extrema-direita nativa a simples sintoma de uma
tendência mundial, assim desapartado do processo histórico nacional. Ora,
o fenômeno político não habita as nuvens. Se a história fosse apenas
isso, ela estaria morta, pois nada mais haveria por fazer. A anomia
política se alimenta nesse refrão, que, ademais, pacífica a consciência dos que
resistem ao combate. É incontestável estarmos em face de fenômeno (avanço
fascista) que se espalha em plano mundial, como foi a emergência do fascismo
histórico nos anos 20 e 30 do século passado. Mas esta não é a história toda,
pois, ademais de desconhecer as diferenças passadas e presentes das
experiências fascistas (determinadas pela diversidade histórica de cada país),
desconhece também a resistência antifascista diferenciada, levada a cabo de
forma igualmente diferenciada, segundo condições especificas. Reduzir a
emergência da onda fascista que nos aflige a simples manifestação de um
fenômeno mundial, exilado da realidade brasileira, implica erro de método, e
carrega consigo o risco de distorções estratégicas graves, como insinuar, para
os que nada fazem, que não há mesmo o que fazer. E a história nos diz que
a serpente de há muito escapou do ovo.
Todas as forças ideológicas fortes do século passado – liberalismo, comunismo,
fascismo-- foram matrizes que conheceram o traço das influências nacionais.
Entre nós, a extrema-direita/fascista teve seu debut nos anos 30 do século
passado, vestida de integralismo, a versão cabocla de um autoritarismo que
Plínio Salgado fôra colher na Itália de Mussolini. Esse fascismo e o getulismo,
que afinal o rejeitou, estreitaram relações no Estado Novo, caminhando para o
rompimento sem volta com o putsch de 1938. A queda de
Vargas em 1945 ensejou o ciclo democrático, que aos trancos e barrancos chega a
1964, quando se instala a ditadura militar que formalmente sai cena em 1985,
abrindo caminho para experiência democrática cunhada como Nova República.
A história não registra milagres, muito menos o reino do acaso, e
assim, os fatos não deveriam surpreender. Mas foi com surpresa que recebemos os
idos de 2013, anunciantes de um processo despercebido pelos
sismógrafos. A ameaça fascista dava seus primeiros sinais e o que se segue é
história recente e conhecida: a difícil reeleição de Dilma Roussef em 2014 e a
transição da socialdemocracia para a direta, e, ao fim e ao cabo, o golpe
parlamentar de 2016, o vestibular da história que se segue. A consolidação
da irrupção fascista far-se-ia conhecer com as eleições de 2018 e os quatro
anos do capitão Bolsonaro. A ascensão do fascismo caboclo fez-se
segundo as regras do processo eleitoral, que antes, nunca será
exagerado lembrar, asfaltara os caminhos de Mussolini e de Hitler. A
extrema-direita encontrou-se com o apoio popular e se espalhou por diferentes
setores da sociedade. Controla as duas casas do congresso, os mais ricos e mais
populosos Estados da Federação.
Este é o ponto de partida para compreendermos a transição da sociedade
brasileira, da aparente opção pelo progresso social (insinuado pela
sequência de governos progressistas) à realidade de um projeto neofascista que
ainda hoje comove parcelas significativas das grandes massas, suas vítimas
preferenciais no curto, no médio e no longo prazo.
Variadas são as teses demonstrativas, ora de nosso substrato
conservador-autoritário, ora do fracasso tanto dos neoliberais quanto da
centro-esquerda no enfrentamento dos problemas cruciais de nossas populações.
No plano internacional, consideradas as significativas diferenças entre os
atores, é temeroso pensar na identificação de uma causação. Na cesta das
possíveis condicionantes devem constar a incapacidade de a socialdemocracia
enfrentar os problemas colocados pelo neoliberalismo, bem como o agravamento da
disputa da hegemonia em mundo que transita da unipolaridade para o
multilateralismo, e que pode nos levar à terceira guerra mundial, se já não
estamos nela.
Não se trata, porém, a opção reacionária, de raio em céu azul, senão de
fenômeno recorrente mesmo em nossa história imediata, como atesta a mais
superficial leitura das dores políticas do século passado, com seu rol
de insurgências: o “Estado novo”, a ação integralista nos anos 30,
e amotinações, intentonas e sedições, golpes parlamentares e militares e
ditaduras, o regime de terror instalado em 1º de abril de 1964.
Não vimos ou nos recusámos a ver o que estava sendo gestado em 2013 (por
seu turno um ponto de referência sem autonomia histórica), nem percebemos os
avisos da difícil eleição de 2014, e muito menos consideramos o processo de
nossa formação, feitoria e depois colônia que se fez país ainda sem povo, sem
sociedade e sem nação, assim, sem projeto de ser, sem um destino por perseguir.
Um império que conservou a estrutura colonial, uma independência que não logrou
a autonomia, uma república que consagraria o governo da lavoura e o mandonismo
dos régulos.
Recebemos o golpe de 2016 – um corte no processo político que
supúnhamos consolidado desde a redemocratização de 1985/1988–, como fato
consumado, e chegámos aos tempos de hoje condenados ao agrarismo
primário-exportador de nossas origens coloniais, condenadas as esquerdas ao
papel de assistentes do processo social, porque não tivemos olhos para ver a
crise do trabalho e as alterações do processo social produtivo,
determinantes de novas relações econômicas e políticas. Ignoramos
o pano de fundo da história contemporânea, e assim tivemos dificuldades,
ainda não superadas, de compreender os fatos dos quais deixamos de ser
agentes. Hipnotizados pela aparência do processo político que sugeria o avanço
das forças progressistas e a consolidação democrática, não nos demos conta das
implicações do desenvolvimento do capitalismo financeiro em sua fase
monopolista, desconsideramos a vitória política do neoliberalismo, não
cogitamos da dependência político-ideológica das economias periféricas, e, em
suas pegadas, não vimos o papel do imperialismo, imprimindo o caráter das
transformações geopolíticas, alterando o xadrez de uma ordem internacional que
se constituía à revelia dos axiomas deterministas que nos diziam que o
progresso social era uma das leis da história.
Assim, não cuidámos do avanço do passado sobre o presente,
convencidos de que o futuro era uma certeza inexorável, mas a história que nos
prometeram na juventude parecia se afastar de nossas vistas, assim como a linha
do horizonte foge do navegador. Aos trancos e barrancos, ao peso de muitas
derrotas, como a de 1964, e algumas vitórias, como a notável vitória eleitoral
de 2002, chegamos ao desastre de 2018, às dificuldades de 2022 e à
intentona de janeiro de 2023, para só agora nos darmos conta do processo
regressista. De todos os temores, o mais assustador é a perspectiva presente de avanço do
projeto neofascista.
Nada obstante os sonhos frustrados de antiga esquerda que sonhou com uma
aliança entre interesses de classe irreconciliáveis, a burguesa aqui habitante
se faz cega em face da nação, e vê, no que supõe ser o povo, um empecilho aos
seus interesses, por isso se embala na sempre presente expectativa de uma
ditadura que “ponha ordem no país”. Daí conhecermos tantos golpes e tantas
tentativas de golpes de Estado. A intentona de 2023 não é um fato isolado e a
história não terminou.
Com essa consciência, a classe dominante brasileira, alienada e
alienígena, construiu as forças armadas do Estado brasileiro, seu braço
forte instrumentalizado para fazer valer o mando de 1% dos ricos e muito
ricos sobre uma população de cerca de 212 milhões, dois terços dos quais se
podem contar como “condenados da terra”. As forças armadas se supõem fruto
delas mesmas e se tornaram uma necessidade em face da concepção de país formada
pelos interesses dominantes. Desde o império foram moldadas para a sustentação
da ordem interna (antes o escravismo e o latifúndio, uma unidade), hoje o
capitalismo retardatário e dependente, cuja sobrevivência mais carece do
empenho repressivo quanto mais é iníquo.
Daí o desinteresse da classe dominante pela independência industrial, pela
autonomia política e econômica, o desinteresse mesmo com as questões de
segurança nacional; daí a vinculação da caserna ao papel fundamental da defesa
dos interesses do capitalismo nos planos nacional e planetário, o que
nos vincula aos interesses e aos jogos do imperialismo, mesmo em sua atual,
marcada por uma decadência aparentemente sem recuo.
Essa subordinação desvincula o país de qualquer expectativa de autonomia,
econômica, política, científica, ideológica.
Assim, talvez se explique o mando de uma classe dominante destravada do
desenvolvimento nacional, e, no entanto, governante e crescentemente
internacionalizada, na medida em que é mais e mais financeira, como exemplifica
a Faria Lima, o altar de uma burguesia antiindustrialista e
antidesenvolvimentista, e, assim, mais dependente de Washington e do
Pentágono, de Wall Street e da City de Londres.
No império escravagista, na república em seu capitalismo de periferia, a
natureza do mando não se altera.
Essa burguesia alimenta seus interesses na especulação do grande capital,
e se associa ao agronegócio-primário-exportador, que é, por definição, uma
dependência do mercado internacional. Somos, no século da
inteligência artificial, o que sempre fomos: uma economia dependente. Saem
da pauta as pedras e o ouro, e nossa balança comercial continua à mercê da
exportação de produtos primários com o mínimo de valor agregado; exportamos
minério in natura e recebemos de volta ligas de aço. Importamos
manufaturas, mas exportamos o frango, a carne, a soja, o feijão, o
milho, as matérias-primas requeridas pela Europa esgotada, ou
por uns EUA que protegem suas reservas com a imposição de taxas
alfandegárias predatórias. Saiu da pauta o pau-brasil, extinto, mas segue a
depredação: vão-se as matas em forma de comodities e, liderando as pautas de
exportação, escreve-se uma extensa listagem de grãos e alimentos que escasseiam
no mercado interno, dando sua inefável contribuição para o processo
inflacionário que se instalou com pompa e circunstância na mesa dos pobres.
Enquanto quase 20 milhões de pessoas passam fome ou são mal
alimentadas, somos um dos maiores, senão o maior exportador de proteínas do
mundo.
É esse o pano de fundo que explica nossa história de hoje. Mas há
espaço para o registro da esperança. Independente de nossas limitações e de
nossas circunstâncias, de povo e país, o processo social avança, e o sintoma
mais claro é a decisão política de, finalmente, impor-se algum
recesso à conciliação, nosso mal de origem que sufoca as expectativas de
progresso, porque sempre transacionada pela classe dominante. Seu
objetivo é blindar o statu quo, espancar a ruptura e impedir a
mudança. São hoje os ventos soprados por um insuspeitado STF, e pela exposição
de corpo inteiro do estágio de decomposição a que chegaram as forças armadas,
pelo braço de seus generais. São, porém, apesar de notáveis, avanços
circunscritos ao campo da politica e da institucionalidade, carentes de
consolidação, porque até aqui se fazem à margem da vida social. É
preocupante a ausência da vontade nacional, que, assim, renuncia ao
papel de sujeito histórico, exatamente quando o que está em jogo é a
sobrevivência da democracia, ameaçada pelo fascismo, que já nos disse a que
veio e o que pretende.
Já é hora de nos perguntarmos quais “circunstâncias e condições” respondem por esse mostrengo responsável pela produção nativa do
bolsonarismo, o chorume do baixo-clero político-parlamentar que, no entanto,
comanda o Congresso e dita as regras com as quais, para sobrevier, nosso governo,
nascido das urnas e na contestação à ordem protofascista, é ungido a negociar,
consagrando a má herança da conciliação pelo alto.
O antídoto à anomia é a organização da sociedade.
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