O Estado de S. Paulo
Por trás da guerra comercial desatada e dos
conflitos militares correntes ou potenciais, existe, na verdade, uma grande
questão democrática a ser enfrentada e desenvolvida
Se bem observarmos, nem tão amalucada assim é
a insólita aproximação entre Mao Zedong e Donald Trump, que diferentes
observadores passaram a fazer. “Há uma grande confusão sob os céus, a situação
está excelente” – sob este lema paradoxal, o primeiro daqueles dois se lançou à
destruição das velharias que supostamente atravancavam o processo
revolucionário em seu país na década de 1960. Trump, o seguidor inesperado,
esmera-se hoje em lançar sua própria versão do caos: uma espécie de guerra
econômica de todos contra todos, esperando com isso refazer unilateralmente a
primazia norte-americana, com base no medo e na chantagem.
Em ambos os casos, o pressuposto da ação política vem a ser uma revolução cultural que não deve deixar pedra sobre pedra. A burocracia do partido e do Estado chinês era o inimigo declarado do voluntarismo extremado de Mao, tal como, agora, o deep State se tornou o alvo do radicalizado partido trumpista. Assim, China e Estados Unidos voltam a ocupar a atenção geral, ainda que com sinal invertido. Antes, a China do camarada Mao pretendia ocupar o posto de vanguarda da revolução comunista, com o cerco das cidades (capitalistas) pelo mundo rural sublevado. Neste momento, contudo, revolucionária seria a América ultraconservadora, com o projeto de fazer retroagir a roda da História e moldar o mundo à imagem e semelhança de um passado irretocável – e inexistente.
Certa de que o século 21 será mais cedo ou
mais tarde asiático, a China age, calcula e enriquece com sabedoria, valendo-se
das regras do jogo até há pouco jogado para realizar, desta vez com inegável
êxito, seu grande salto para a frente. A arrancada econômica serve de biombo ou
álibi, para esconder o evidente déficit democrático.
Estimula, ainda, a noção de um Ocidente em
declínio, com sociedades irremediavelmente dilaceradas e grupos dirigentes
particularmente incapazes de se moverem num contexto de “policrise”, para usar
a inquietante expressão de Adam Tooze.
Mais nebulosa, porém, é a certeza de que uma
ambição hegemônica, no sentido alto do termo, possa se concretizar a partir de
uma sociedade controlada digitalmente por um partido único totalizante e
onipotente como poucos. Um sistema de “créditos sociais”, atribuídos a cada
indivíduo, tem o potencial de degenerar rapidamente em controle e repressão
aberta ou silenciosa, com um desfecho de tipo orwelliano – se é que já não
degenerou. A tímida liberalização chinesa estancou com a ascensão de Xi
Jinping, o strongman requerido por estruturas sociais desta natureza, tão ou
mais poderoso do que Mao a seu tempo.
A sedução dos strongmen também habita
corações e mentes da extrema direita ocidental. É preciso qualificar um pouco
mais o caos que ela celebra e em que prospera.
Impressiona antes de mais nada o tom
apocalíptico usado por Trump – a figura típica por excelência – para descrever
a realidade que percebe no seu país. Invadidos por imigrantes indesejáveis e
manipulados pelo inimigo interno, que toma corpo em intelectuais, professores e
demais camadas e classes de orientação cosmopolita, os Estados Unidos são ainda
por cima sistematicamente espoliados e oprimidos por todos os demais países,
aliados ou não, numa espécie de imperialismo às avessas. Trata-se, por isso, de
mobilizar a enorme e confusa massa de ressentimentos contra um ambiente visto
como universalmente hostil.
A economia, por exemplo, deve voltar a
produzir bens palpáveis e empregar mão de obra masculina, de baixa qualificação
relativa. A revolução dos costumes, que altera papéis tradicionais, é vivida
como fonte de decadência moral e corrosão de valores. O líder tem, ou afirma
ter, procuração para simplificar autoritariamente a complexidade da sociedade
civil e as mediações institucionais da sociedade política, buscando a
concentração de poderes. Neste ponto – Orwell de novo –, ignorância é força, as
universidades são cerceadas, as pesquisas reprimidas, as liberdades públicas
golpeadas – em detrimento, inclusive, do homem comum, o suposto beneficiário
deste conjunto de arbitrariedades que se acumulam e terminam por anulara
riqueza das formas ocidentais de vida.
Homens fortes se entendem e até se respeitam à sua maneira, por mais diversas que sejam as motivações, os contextos de origem e os antagonismos, que encenam ou realmente vivem. Entre Trump, Xi e Putin(o sócio menor que os dois primeiros disputam, coma óbvia vantagem de Xi), há um fio que os liga, uma secreta correspondência de que alternadamente se socorrem em benefício pessoal ou dos sistemas de poder que encarnam. Por trás da guerra comercial desatada e dos conflitos militares correntes ou potenciais, existe, na verdade, uma grande questão democrática a ser enfrentada e desenvolvida. Para tanto, os democratas e a própria democracia deverão saber se reinventar sob fogo cerrado, reafirmando tanto quanto possível sua vocação cosmopolita e retomando contato com medos e esperanças da gente comum, hoje demagogicamente explorados em sentido regressista.
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