O
novo Odorico leva o povo para o altar do sacrifício. Que morram muitos mais. E
daí?
Em
1973 não havia liberdade de expressão no Brasil. A ditadura militar torturava
dissidentes, exterminava guerrilheiros no Araguaia e tolhia a imprensa. Nas
redações dos jornais, censores cortavam reportagens inteiras poucas horas antes
de os cadernos começarem a ser impressos nas rotativas. Preencher os vazios
abertos pela tesoura da repressão política era um tormento. Este jornal, O
Estado de S. Paulo, encontrou uma solução heterodoxa: no lugar do material
censurado, passou a publicar trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões.
Entre 2 de agosto de 1973 e 3 de janeiro de 1975, foram 655 inserções do épico
lusitano nas páginas do Estado, conforme levantamento feito pelo
jornalista José Maria Mayrink.
Pois
no mesmo ano 1973, em meio a tantas trevas, entrou no ar uma criação primorosa
do dramaturgo brasileiro Dias Gomes: O Bem-Amado. Sob a vigência da
mordaça absoluta, O Bem-Amado estreou com a força de uma apoteose
libertária e satírica. Era um contrassenso: como podia haver espaço na
televisão para tamanha exuberância criativa, e tão crítica, sob uma tirania tão
estupidamente violenta?
Dias Gomes era um autor de esquerda, com ligações históricas com o Partido Comunista, e dono de um talento assombroso. O protagonista que ele inventou para O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu (interpretado pelo ator Paulo Gracindo), comandava com mão de ferro, sem nenhum constrangimento de ordem moral, a prefeitura da fictícia Sucupira. Odorico era um canalha corrupto e truculento que, sob o gênio de Dias Gomes, ganhava ares despudoradamente cômicos. Nisso residia seu carisma. Falastrão semianalfabeto, posava de orador erudito à custa de expressões incultas, mas empoladas, que proclamava em tons triunfais. Gostava de xingar os adversários de “desaforistas” e quando queria humilhar os subordinados dizia que eram “desapetrechados de inteligência”.
Se
diante dos noticiários de TV a sociedade prestava silêncio obsequioso aos
ditadores que se sucediam, diante da novela podia rir deles sem medo da cana.
Graças a Odorico Paraguaçu, o país vilipendiado caçoava do arbítrio, da
demagogia e da estultice. Foi um sucesso instantâneo e impune. Os homens da
ditadura, que se viam como agentes “modernizantes” e “urbanos”, não percebiam
que o prefeito de Sucupira, de feitio rural, regionalista, antiquado e
ridículo, era o retrato escarrado deles mesmos. A ditadura era burra, tão burra
que batia palmas para a televisão que a fazia de palhaça. Contrassenso total.
Odorico
se impôs de tal maneira que nunca mais saiu de cartaz. A Rádio CBN andou usando
diálogos da antiga novela para ilustrar a desconversa de políticos da vida real
acusados de corrupção. Agora, nos dias que correm – embora corram sem sair do
lugar –, recortes de cenas impagáveis viajam nas redes sociais para delícia dos
públicos mais diversos,
As
semelhanças com o presente são efetivamente cômicas, mas também estarrecem.
Numa das cenas que hoje circulam nas redes, Odorico aparece conversando com seu
assessor direto, o igualmente antológico Dirceu Borboleta, interpretado por
Emiliano Queiroz. O assunto é uma epidemia que ameaça Sucupira. O prefeito
armou uma tramoia para impedir que o dr. Leão (Jardel Filho), seu desafeto
político, distribua a vacina. Dirceu não se conforma. Sabendo que Odorico vai
interceptar o carregamento das vacinas do dr. Leão, interpela o chefe para
expressar sua discordância exasperante.
Com
a voz medrosa, em titubeios que vão e vêm, Borboleta empreende enorme esforço
para externar seu protesto. Ele, sempre submisso, está quase fora de controle.
Aquilo não pode ser. Dirceu se exalta. Como deixar sem proteção o povo de
Sucupira?
O
prefeito reage, impaciente: “E daí, seu Dirceu?”. Esse “e daí?” soa chocante. O
espectador descobre que a pergunta retórica vem de entranhas imemoriais da
política nacional. O “e daí?”, como expressão de desprezo pela vida, não é de
hoje.
Dirceu
não se cala. Tomado de furor cívico, aumenta a voz: haverá um “assassinato em
massa, um genocídio”. Passa a mão direita sobre a manga da camisa no antebraço
esquerdo, como se acometido de comichões, dizendo que isso lhe dá “até
arrepio”.
Então
Odorico se põe em brios patrióticos, ralha com o assessor e começa a explicar
seu plano. Diz que não vai impedir a vacinação, mas apenas desviar o
carregamento para o posto de saúde que planeja inaugurar na cidade. Aí, sim,
entregará a salvação sanitária a todos e todas. O herói será ele, Odorico, e
não o dr. Leão, esse tal “que está do outro lado, do lado da oposição”. Dirceu
vai se resignando, vai se rendendo, compreende o plano e fica aliviado. De um
jeito ou de outro, a vacina virá e, para ele, está bom assim.
É
fato que hoje, na Sucupira Central, há um Odorico pior, assumidamente genocida,
que quer exterminar a vacina da oposição sem ter nada para oferecer no lugar. O
novo Odorico seguirá levando o próprio povo para o altar do sacrifício ritual.
Que morram mais, muitos mais. “E daí?”.
Dias
Gomes talvez tenha sido um humorista profético. Ou um charadista. Em que chave
cômica se explica a tragédia brasileira?
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário