sexta-feira, 23 de maio de 2025

A marcha solitária do Estado sem controle – Fernando Gabeira

O Estado de S. Paulo

A realidade é que marchamos para uma nova eleição presidencial num contexto de distância entre a sociedade e seus representantes

Nos últimos tempos, tenho a impressão de que o Estado brasileiro se liberou completamente das amarras sociais e navega livremente pelo oceano de seus próprios interesses.

O Congresso é o lugar onde a liberdade de cuidar de si passou ater maior dimensão. Para começar, temos ocaso não resolvido das emendas. Não há controle social sobre ela se, em alguns casos, apenas a esperança de que, no sistema de pesos e contrapesos, o Supremo Tribunal Federal (STF) consiga frear o avanço dos congressistas. Rosa Weber tentou deter o orçamento secreto. Houve inúmeras escaramuças, masa Constituição não prevaleceu.

Da mesma forma, as tentativas do ministro Flávio Dino para determinara transparência esbarram em grandes obstáculos. Como foi um ministro indicado por Lula, o esforço para conter o Congresso acaba repercutindo nos municípios. Deve estar aí a causa das vaias que o presidente recebeu na marcha dos prefeitos em Brasília. Se foi esse o motivo, é sinal de que o corpo político brasileiro não aceita mais a ideia de um Orçamento nacional controlado pelo Executivo para realizar as promessas de uma campanha presidencial.

Os resultados são conhecidos hoje: fragmentação no uso dos recursos, irracionalidade, assim como uma corrupção difusa e incontrolável.

Mas o barco navega por outras ondas. Na semana passada, a Câmara aumentou o número de deputados, de 513 para 531, com um impacto estimado, por baixo, de R$ 65 milhões ao ano. Não houve repercussão social. Se fizermos uma pesquisa, certamente a maioria reprovaria este aumento. Mas ela já não se dá mais ao trabalho de protestar, por cansaço.

Resta a esperança de que o Supremo detenha esta manobra. Afinal, o que foi autorizado é apenas um reajuste nas bancadas, proporcional ao número de habitantes por Estado. Alguns perderiam, outros ganhariam, mas o número final não seria alterado.

Mas será que o STF vai enfrentar mais essa? Há outras frentes no litígio entre as instituições. Uma delas foi aberta com a suspensão do processo contra o deputado Alexandre Ramagem. O STF aceita não processá-lo por crimes realizados depois da diplomação, mas os cometidos antes estão de pé.

O caso é apenas um balão de ensaio destinado a criar uma espécie de blindagem para os deputados. Fala-se em anular, da mesma forma, o processo contra o ex-ministro das Comunicações Juscelino Filho, e a própria Carla Zambelli deposita suas esperanças, depois de uma condenação a dez anos de prisão.

Tudo isso enfraquece a democracia, como se ela estivesse morrendo ao longo desses anos, com pequenos espasmos de resistência.

O próprio Judiciário, em certos momentos, também navega em águas turvas. É muito grande o número de altos funcionários da Justiça que ganham salários acima do teto. Há investigações sobre venda de sentenças no Superior Tribunal de Justiça e nos tribunais de Tocantins e Mato Grosso.

Não se pode projetar no STF o papel de salvador. Sua atuação contra o golpe de Estado foi elogiada de um modo geral, mas logo alguns excessos surgiram a ponto de motivarem reportagens de veículos internacionais como The Economist e The New York Times. O contraargumento é o de que esses órgãos compraram as versões da extrema direita, mas não são precisamente simpáticos a essa corrente política.

Resta o Executivo, sem condições de estabelecer um equilíbrio.

Também se debate com notícias de corrupção no INSS, embora estejamos tratando de um processo antigo, fraco demais para confrontar o Congresso e dependente do STF.

No meu entender, está criada uma situação semelhante à anterior a 2013, com a diferença de que as revoltas daquele ano se desdobraram numa experiência que terminou com a vitória de um suposto outsider, em 2018. Bolsonaro se dizia contra tudo o que está aí.

Apesar dessa experiência traumática, a possibilidade do aparecimento de outsiders nas campanhas eleitorais continua de pé, sobretudo porque eles podem tomar outras formas, criar novos discursos, como aconteceu com Pablo Marçal na eleição municipal de São Paulo. Excluído do processo por sua própria inexperiência e fragilidade política, ele acabou revelando que uma parte da juventude buscava novos rumos, mais próximos do universo cotidiano.

A realidade é que marchamos para uma nova eleição presidencial num contexto de distância entre a sociedade e seus representantes.

Grande parte dos deputados considera sua reeleição tranquila com uma grande fatia do Orçamento para garantir sua volta. No longo prazo, é apenas um sintoma da crise, porque isso anuncia que no nível do Congresso não teremos novidade e o barco continuará seguindo suas rotas.

E o presidente que surgir do processo? Terá força para impor sua posição, vai remar a favor da corrente, na esperança modesta de preservar o poder?

O único problema nesta aprazível viagem é o fato de que a sociedade é dinâmica e dificilmente vai aceitar essa pasmaceira ao longo dos anos. Em algum momento, um iceberg vai se colocar no caminho deste incontrolável barco estatal.

Por enquanto, é difícil definir os contornos do desastre. Mas a possibilidade de que aconteça aumenta na medida em que o barco se distancia da costa, onde vivem as pessoas com seus problemas e sonhos.

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