sexta-feira, 23 de maio de 2025

No banco dos réus, o autoritarismo - Fernando Luiz Abrucio*

Valor Econômico

Ficar sem qualquer punição será definir a tentativa de atentado contra a democracia como algo sem chances de prosperar. A história do país diz o contrário

O pedido de anistia articulado pela oposição tem um significado mais profundo do que o perdão de crimes cometidos pelos réus. A sua aprovação seria o esquecimento da principal questão que está em jogo: quase o Brasil voltou ao autoritarismo, depois de ter se livrado há quatro décadas do regime militar. Simplesmente ficar sem qualquer punição ou abrandar demasiadamente as penas, será definir a tentativa de atentado contra a democracia e a efetiva intentona que ocorreu em 8 de janeiro de 2023 como episódios fortuitos, que não teriam chances de prosperar. A história do país diz o contrário, e a realidade atual não garante que estamos livres de novos golpismos.

Muitos dos que defendem a anistia, inclusive do ex-presidente Jair Bolsonaro, que era o verdadeiro chefe do golpismo, dizem que ela produziria a pacificação do país. Esse argumento não é novo. Ele também foi utilizado por aqueles que tentaram retirar à força o presidente Juscelino Kubitschek do poder e que foram, ao final, anistiados por JK. Qual foi o resultado dessa ação presidencial benevolente? Mudou positivamente o clima político do país?

Ao contrário, a tensão só aumentou nos anos seguintes, culminando com o golpe militar de 1964 e 20 anos de autoritarismo, ao custo da perda da liberdade de todos os brasileiros e do grande sofrimento dos que foram torturados, desapareceram ou morreram. A única paz alcançada foi a dos cemitérios. O mesmo Juscelino que tinha perdoado os golpistas que quiseram tirá-lo do poder foi cassado e depois morreu em condições muito estranhas - o mais provável é que ele e Jango tenham sido mortos por ação planejada meticulosamente pelo regime militar.

Modelos autoritários de poder dominaram a maior parte da história brasileira e a democracia é exceção. A construção de instituições democráticas desde 1985 foi - e continua sendo - uma tarefa hercúlea. Mesmo com todos os percalços, como dois impeachments, algumas crises políticas graves e um presidente declaradamente golpista, o Brasil fincou importantes bases democráticas que têm resistido. As mais destacadas são um sistema de votação eficiente e fidedigno, a alternância do poder com vários partidos tendo governado os três níveis de governo, a existência de controles federativos e dos outros Poderes federais sobre os presidentes da República, além da existência de uma imprensa e uma sociedade civil livres e com setores combativos.

Tais pilares democráticos foram fundamentais para o fracasso do golpismo bolsonarista. Mas eles sozinhos talvez não fossem suficientes para evitar a quebra da democracia. Três outros fatores foram essenciais na contenção do golpe. O primeiro, sem dúvida alguma, esteve vinculado à pressão internacional, tanto europeia como, principalmente, dos Estados Unidos. O presidente Biden agiu firmemente na defesa da democracia no Brasil e deveria, inclusive, ser homenageado pelos democratas brasileiros de forma mais efusiva.

Vale imaginar o que teria acontecido se o governante americano fosse Trump, aliado de Bolsonaro e líder da extrema direita com projetos autocráticos por todo o mundo. O resultado poderia ter sido outro, e hoje quem estaria pedindo anistia seriam membros do governo Lula, políticos que enfrentaram o bolsonarismo - como Doria e Eduardo Leite -, jornalistas, professores, padres, líderes de movimentos sociais, artistas e todos aqueles que tiveram uma participação na defesa da democracia durante os quatro anos sombrios da gestão bolsonarista. Será que esse grupo todo ficaria livre da prisão ou de algo pior? Haveria clemência da extrema direita brasileira com aqueles que não a seguissem caninamente? Mais do que isso: haveria processos judiciais acompanhados e criticados livremente?

Um segundo fator que atrapalhou o plano golpista foi a falta de convicção das lideranças militares quanto à proposta autocrática de Bolsonaro. É muito difícil avaliar o conjunto das Forças Armadas e mais ainda as diferenças entre Exército, Aeronáutica e Marinha. Obviamente que as instituições militares não foram completamente democratizadas no Brasil como nos países desenvolvidos. Mas a dúvida quanto ao retorno de uma ditadura e seus efeitos fez com que alguns comandantes, num tamanho necessário para enfraquecer o ímpeto autocrático, não embarcassem na aventura bolsonarista. Vendo tudo o que aconteceu, sobretudo a provável punição de militares da ativa e da reserva, há boas chances de que as lideranças militares do futuro tenham mais medo do canto da sereia do bolsonarismo e afins.

Atores centrais da economia não estimularam o golpe bolsonarista, sendo este um terceiro fator de contenção pouco comentado. Houve em 2022 um cenário oposto ao de 1964, quando a elite econômica apoiou de forma aberta e decisiva os planos de intervenção militar. Claro que houve agentes econômicos, especialmente de setores difusos do agro e dos serviços, que desejaram um golpe e deram dinheiro para a intentona bolsonarista de 8 de janeiro. Mas o sentimento de que o dia seguinte poderia ser caótico e levar à perda da estabilidade foi decisivo para que não houvesse um levante das elites pelo golpismo.

Parte dos fatores que seguraram o golpe bolsonarista ainda permanece, porém, há aspectos mais incertos e com possibilidade de gerar pressões antidemocráticas. Um deles é o retorno de Trump ao poder. Não se sabe ainda o quanto ele pressionará a favor de regimes autocráticos fora dos EUA, só que uma eleição apertada no Brasil - cenário mais provável com os dados atuais - poderia estimular, no mínimo, a crença da extrema direita e seus seguidores numa intervenção americana no processo político brasileiro. Pode até não ocorrer ou ser um fracasso, mas esse fator geraria uma enorme instabilidade.

Mais perigoso ainda é a construção de um clima de terror antidemocrático contra as instituições que estão julgando os golpistas, em particular o STF, sua Primeira Turma e o símbolo da resistência ao bolsonarismo, o ministro Alexandre de Moraes. Evidentemente que o julgamento de uma situação extrema como a que passou o Brasil pode levar a exageros na defesa da democracia - até o Tribunal de Nuremberg foi acusado disso. E de fato se poderia ao menos ter dividido a tarefa de comandante dos processos judiciais, para que uma figura única não fosse retratada como um “déspota”, um juiz “acima das instituições”.

Verdade ou não, ficou mais fácil criar essa simbologia porque um modelo mais colegiado, que protege mais a institucionalidade do STF, ocorreu numa medida muito menor do que deveria. Ressalte-se que esse comportamento não se restringe ao julgamento dos golpistas bolsonaristas e é um dos problemas estruturais do Supremo. Tal padrão vigorou em outros processos relevantes, como no Mensalão, embora em menor proporção. De todo modo, a narrativa da extrema direita costumeiramente toma a parte pelo todo, com suas falácias argumentativas, e esse caso se tornou um prato cheio para um projeto futuro de desestabilização da democracia.

A continuidade desse embate com o STF ocorrerá logo ali na esquina da eleição de 2026. Um dos principais motes bolsonaristas é eleger uma maioria no Senado para derrubar alguns ministros do Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro está articulando esse movimento golpista antes de sua própria condenação. Essa é uma ameaça crível e gigantesca à democracia brasileira. Onde grupos políticos programaram a destituição de membros do Judiciário houve ou a quebra do regime democrático ou um enfraquecimento das instituições e o fortalecimento de lideranças personalistas pouco comprometidas com o Estado de Direito.

Destituir ministros do STF é claramente uma ameaça golpista com o intuito de mudar o jogo democrático nas duas situações em que ele poderá estar em 2027: se o lulismo vencer, será uma forma de desestabilizar a democracia e seu governo, preparando o terreno para derrubar o governante com um impeachment; se o bolsonarismo ganhar, será uma maneira de reduzir os controles institucionais sobre o presidente da República. Nesse segundo caminho, o domínio sobre o Supremo poderá ser o primeiro passo para sufocar todos os freios e contrapesos do sistema político brasileiro. Até porque é provável que o Legislativo, a Federação e mesmo a sociedade civil resistam menos que no período 2019-2022. Quem duvida dessa hipótese deveria comparar o governo Trump atual com sua primeira chegada à Presidência americana.

Esse plano golpista já está nas ruas e grande parte da sociedade, incluindo quem defendeu a democracia em meio ao vendaval autocrático, não percebeu a ligação da defesa da anistia irrestrita aos bolsonaristas, com preferência pelos tubarões em relação aos bagrinhos, com um projeto de ganhar espaço político-eleitoral em 2026 para usar o regime democrático contra ele próprio. Declarar que ter maioria no Senado é um objetivo para derrubar ministros do Supremo é o ovo da serpente.

O autoritarismo está no banco dos réus por meio dos agentes que tentaram implantá-lo, em maior ou menor medida. Absolvê-lo ou puni-lo de forma branda é trair a democracia. Lideranças de direita que poderiam agora se livrar de Bolsonaro e de toda sua toxicidade estão agindo como office-boys de um autocrata. É uma tragédia, pois para se evitar a volta à ditadura, todos os espectros ideológicos têm de acreditar no regime democrático.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

 

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