O Estado de S. Paulo
É preciso cuidado. Muitas vezes, estes que
falam muito em nome da liberdade de expressão só querem abafar as vozes
discordantes
Essa pergunta precisa ser respondida com
calma. Entre outras razões, porque a resposta enfurece. Vamos então à resposta,
mas vamos com calma.
Na manhã de anteontem, o Congresso Nacional
celebrou o sesquicentenário deste jornal numa sessão solene presidida pela
senadora Mara Gabrilli (PSD-SP). A liberdade foi o tema dominante. À tarde, num
hotel não muito distante da Praça dos Três Poderes, o Estadão apresentou um
seminário totalmente dedicado à liberdade de expressão. Vi tudo de perto.
Peguei um voo bem cedo em Congonhas, compareci aos dois eventos e voltei à
noite para São Paulo. Valeu a viagem.
Valeu ter estado na homenagem do Poder
Legislativo ao jornalismo independente, que anda tão ameaçado no Brasil, nos
Estados Unidos e em tantos países. Depois, valeu participar de um colóquio
sobre essa garantia fundamental tão maltratada, que tem sido usurpada,
parasitada e sucateada por forças que não se cansam de sabotar a ordem
democrática. O que acontece nos nossos dias é uma inversão absurda, impensável,
que, no entanto, vai virando rotina, como se fosse um dado da mais pacata
normalidade.
Mas, afinal, quem são os usurpadores, quem são os predadores? Chegaremos lá.
Comecemos por lembrar que a liberdade de
expressão é um direito humano. Isso significa, entre outras coisas, que esse
direito só pode ser exercido por pessoas humanas, essas pessoas que são feitas
de carne, osso e algum espírito. As pessoas jurídicas, como as grandes
corporações ou os Estados, não são sujeitos da liberdade de expressão. Jamais
poderiam ser. Não obstante, quase todos os dias, os maiores grupos econômicos
do planeta se esmeram em manipular a opinião pública e depois alegam que fazem
isso porque exercem o direito humano de se exprimir livremente.
Trata-se de um disparate completo. Algoritmos
não têm liberdade de expressão.
Traquitanas de inteligência artificial não
são pessoas humanas, por mais que tentem se parecer com elas. Quando uma dessas
big techs vai a público para convencer sua audiência de seu ponto de vista (na
verdade, vai tentar impor a todo mundo o seu interesse privado, usando técnicas
persuasivas de propaganda), o que se estabelece é uma prática que não tem nada
de liberdade de expressão. Não existe lá uma pessoa física expondo uma opinião
em diálogo com outras pessoas físicas. Só o que existe é um equipamento
trilionário distorcendo a pluralidade que seria desejável no debate das ideias.
Não, definitivamente, o que se vê nesses casos não é um cidadão fazendo uso
legítimo da palavra. O que se vê é um abuso – abuso de poder econômico e
tecnológico.
A toda hora, os magnatas da tecnologia agem
para deslocar o ponto de equilíbrio da esfera pública, por meio de duas táticas
entrelaçadas. Pela primeira tática, impulsionam a circulação das teses que lhes
são favoráveis. Pela segunda, estancam, ou mesmo sufocam, o trânsito das teses
que não lhes convém. Para eles, a “liberdade” é um salvoconduto para inutilizar
a liberdade dos demais.
Os exemplos são vários. Lembro um deles. No
dia 1.º de maio de 2023, lá se vão dois anos, o Google estampou em sua página
(mais conhecida como home) um link para um artigo que atacava o Projeto de Lei
(PL) que seria votado na Câmara dos Deputados: o PL 2.630, também conhecido
como o PL das Fake News. O pobre internauta entrava no Google para digitar lá
uma palavra sobre a qual queria informações e dava de cara com um convite ou,
mais propriamente, uma intimação: se tivesse algum juízo, tinha de ler o texto alarmista
contra o PL 2.630.
Uma Poliana da vida poderia dizer que não
havia problema naquilo lá. Ora, o Google estava apenas compartilhando com os
mortais o que achava de uma decisão que a sociedade brasileira deveria tomar
soberanamente. Acontece que o mesmo Google já detinha, naqueles tempos, mais de
90% de todas as buscas que os brasileiros faziam na internet. Na prática,
detinha um monopólio e, ao ocupar todo o seu domínio com a opinião dos seus
donos, que nem brasileiros eram, impedia que outras visões sobre o assunto
pudessem ter a mesma visibilidade. A liberdade de expressão do Google, naquele
episódio, acarretou o silenciamento da liberdade de expressão alheia. Usurpação
é pouco.
A isso nós deveríamos dar o nome não de
liberdade de expressão, mas de abuso de poder. Outras big techs têm tido
comportamentos semelhantes. Recentemente, uma empresa de nome Uber comprou todo
o espaço das primeiras páginas dos dois maiores jornais de São Paulo para, com
peças de publicidade simpatiquinhas, fazer lobby a céu aberto e convencer o
município a autorizar serviços de, com todas as aspas, “uber moto”. E aí?
Liberdade de expressão ou abuso de poder? Por acaso a opinião contrária, que
não tem parte com o mesmo capital, teve expressão equivalente?
É preciso cuidado. Muitas vezes, estes que
falam muito em nome da liberdade de expressão só querem abafar as vozes
discordantes. E eles não vêm sozinhos: contam com o poderio da técnica, do
dinheiro e de um tal presidente dos Estados Unidos a lhes dar fôlego e
cobertura.
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