O Globo
Segundo dados de 191 pesquisas sobre
popularidade, 119 apontam crescimento de quase dois dígitos na desaprovação — a
média de aprovação caiu para 44% segundo o levantamento, feito pelo New York
Times
Final de julho de 1980, Aeroporto
Internacional Sheremetyevo, em Moscou. O empresário Roberto Civita, editor das
revistas da Editora Abril, estava entre os milhares de estrangeiros atraídos
pela oportunidade de cruzar a Cortina de Ferro e assistir aos Jogos Olímpicos
na União Soviética. Além de gostar de esportes, Civita queria observar como o
colosso comunista lidaria com o evento. Desembarcou despreocupado com meia
dúzia de exemplares da revista Veja na bagagem. Era uma edição sobre os Jogos,
fresquinha da gráfica, que trazia a imagem do líder soviético Leonid Brejnev na
capa. Estava orgulhoso e pretendia mostrá-la aos jornalistas que faziam a
cobertura olímpica em Moscou.
Péssima ideia. As revistas estampavam a caricatura de Brejnev com feições de urso feroz, e o tempo fechou com os agentes da imigração. Não só confiscaram o material e mais alguns extras, como retiveram o viajante para explicações. Segunda ideia péssima de Civita: argumentou não ser mero leitor, mas representante do maior grupo editorial brasileiro que publicava aquelas revistas. Para ouvidos soviéticos, um capitalista incontrito. O não diálogo foi bastante tenso, contaria depois.
Nesta semana, o episódio de 45 anos atrás
saltou do baú da memória. Isso porque, em julho de 2026, a nação americana
celebrará os 250 anos da assinatura da Declaração de Independência, festança
que pretende ter impacto comparável ao que foram os Jogos de Moscou para a
URSS. A julgar pelo clima de suspeição e arbítrio já demonstrado neste início
de governo, a recepção a visitantes de determinadas origens, posições políticas
ou ideológicas, currículo ou profissões, pode não ser do gosto das autoridades
trumpistas. Dias atrás o site da Embaixada dos Estados Unidos no
Brasil e sua página no X de Elon Musk fizeram a seguinte postagem bilíngue:
— TODOS devem estar de sobreaviso. Se você é
um visitante em nosso país, comporte-se como tal. Nosso rigoroso programa de
verificação em redes sociais para identificar riscos à segurança nacional e à
segurança pública nunca para. O U.S. Citizenship and Immigration Services está
atento para encontrar qualquer coisa on-line que represente uma ameaça à nossa
nação e a nosso modo de vida. Green cards e vistos são um privilégio, e não um
direito.
Logo nos primeiros dias como presidente,
Trump já demonstrou sua capacidade e determinação em fazer desaparecer pessoas
que cometeram ou não algum crime, sendo ou não cidadãos legalmente
documentados. Convém, portanto, mesmo para viajantes desavisados, não
desembarcar nos Estados Unidos com o celular recheado de opiniões mordazes
sobre o reinado trumpista.
Uma segunda postagem no site da embaixada, do
mesmo dia 30 de abril, surpreendeu pelo tema. Ela informa que uma equipe do
Departamento de Estado no consulado americano em Porto Alegre (RS) realizou um
exercício de treinamento sobre armas de destruição em massa contra “uma
possível ameaça química, biológica, nuclear ou explosiva”. Caramba. Talvez seja
melhor nem se interessar pelos festejos de 2026 e, assim, evitar sobressaltos.
Trump, convenhamos, é único. Em 2021, foi
enxotado de Washington pelo voto, com dois impeachments no currículo,
abandonado por aliados e banido de suas plataformas sociais preferidas. Um
pária, em suma. Sua ressurreição política, alvo de exaustiva, invejável (e
saborosa) reportagem da revista The Atlantic (“I run the country and the
world”), explica por que ele, hoje, se sente invencível. A ponto de
desmantelar, com voracidade e velocidade inauditas, quase todos os anteparos de
proteção à integridade pública do governo federal. Dezenove agências
reguladoras foram evisceradas, abrindo caminho para um caminhão de conflitos de
interesses, reversão de políticas voltadas ao bem comum e negociatas sem
escrutínio, privadas, da Organização Trump com seletos governos estrangeiros.
A noção de governo como bem público
democratizante e instituição de responsabilidade social vem sendo metodicamente
destruída, constata Henry Giroux, acadêmico distinto Paulo Freire em Pedagogia
Crítica na Universidade McMaster, do Canadá. No Estado trumpista, o bem público
passou a ser tratado como inimigo, sustenta.
Mas a impetuosidade dos cem primeiros dias já
começa a mostrar as primeiras rachaduras. Segundo dados de 191 pesquisas sobre
a popularidade de Trump desde a posse, 119 apontam crescimento de quase dois
dígitos na desaprovação — a média de aprovação caiu para 44% segundo o
levantamento, feito pelo laboratório de dados do New York Times.
Para Giroux, diante da apatia comatosa do
Partido Democrata, seria imperativo uma ação da sociedade civil. “O fascismo se
alimenta de desespero, cinismo e silêncio, mas a História ensina o contrário”,
diz ele. É quando pessoas comuns se recusam a ficar em silêncio, quando
ensinam, criam, marcham e falam com clareza feroz, que os alicerces do poder
indevido começam a ruir.
Faltam 1.536 dias para o término do mandato
regulamentar de Trump.
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