sábado, 20 de dezembro de 2025

Chavão abre porta grande. Por Eduardo Affonso

O Globo

Clichês são uma faca de dois gumes. Se os repetimos tanto é porque tiveram poder de fogo e, em algum momento, foram um gol de placa

O clichê é um divisor de águas na vida de quem escreve. É a tábua de salvação quando o cérebro aciona o piloto automático, incapaz de qualquer esforço intelectual — e a dificuldade de pensar e elaborar simbolicamente nos faz tirar da cartola, ou do bolso do colete, uma imagem que valha mais que mil palavras.

Via de regra, é só a gente baixar a guarda e... lá está ele, dando o ar da sua graça e apontando a luz no fim do túnel do que parecia um beco sem saída ou o fundo do poço. Chega como uma bala de prata para que não seja preciso ficar dando murro em ponta de faca, enxugando gelo ou chorando sobre o leite derramado.

Não quero dar o pontapé inicial numa caça às bruxas nem esticar a corda para estancar a hemorragia de lugares-comuns que assola a imprensa. Tampouco acionar uma metralhadora giratória e pôr ordem na casa. Não tenho costas largas e viraria saco de pancadas, cavando minha própria sepultura. Mas dói na alma abrir o jornal, o site de notícias, e ler que o Centrão costura acordos, que o presidente americano era a última carta do bolsonarismo, que o governo não quer dar o braço a torcer, que o ministro vai enxugar o orçamento e que certa candidatura pode embaralhar o jogo. É uma dose tão cavalar de clichês que o leitor precisa arregaçar as mangas, suar a camisa e, a duras penas, aos trancos e barrancos, tentar deixar passar em branco esse golpe baixo na linguagem.

Sim, os clichês são uma faca de dois gumes. Se os repetimos tanto é porque tiveram poder de fogo e, em algum momento, foram um gol de placa, um salto qualitativo, um toque de mestre. Mas, para Bachelard, são a inatividade do pensamento. Flaubert chegou a criar com eles um “compêndio da banalidade, da mediocridade e da ignorância pretensiosa”. Cláudio Tognolli dedicou-lhes um livro inteiro (“A sociedade dos chavões”). E o filósofo da MPB Itamar Assumpção acertou na mosca ao dizer que “chavão abre porta grande”.

Abre, mas é uma pedra no sapato de quem escreve coluna semanal, sem aquele tempo de gaveta a que a literatura de verdade faz jus. E aí é um tal de político tentando salvar a própria pele, quadrilhas sendo desbaratadas, suspeitas ganhando corpo. Surgem provas robustas, há ascensões meteóricas, muitas camadas e — nem García Márquez escapou à lei da selva da banalização — a morte anunciada disso e daquilo.

Lutar contra o clichê é briga de cachorro grande. Atire a primeira pedra quem nunca errou na mão ou mordeu a isca e acabou empurrando com a barriga esse compromisso com o erro.

É bom parar por aqui antes que dê com os burros n’água — afinal, tenho telhado de vidro. Por mais que tente, minha escrita não tem precisão cirúrgica, e mexer nesse vespeiro não impedirá que me peguem com a boca na botija, falando em narrativa, saberes, curadoria, performar — nem nos atravessamentos e interseccionalidades que, num passe de mágica, jogam uma pá de cal na legibilidade de qualquer texto.

Apesar dos pesares, entregar-se de corpo e alma à escrita é a prova de fogo de todo escritor. E cabe a ele defender com unhas e dentes seu direito de enfrentar desafios, quebrar paradigmas e não fugir da raia. Nem que apelar para a cereja do bolo seja seu tiro de misericórdia.

E isso é só a ponta do iceberg.

 

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