Merval Pereira
DEU EM O GLOBO
DEU EM O GLOBO
NOVA YORK. O comparecimento de 70% dos eleitores registrados, um marco histórico em cem anos, mostra bem o anseio da sociedade americana por mudança e, sobretudo, por superar a barreira racial, que foi o grande fato político desta eleição, destacado por nove entre dez jornais.
Imaginar que o fator racial estava fora dessa disputa é não compreender o enorme fardo que pesava sobre a nova sociedade civil americana, que se apresentou ontem nas urnas, enfrentando filas enormes, para ajudar a ultrapassar esse obstáculo. Aqui em Nova York, parecia fim de campeonato, com a vitória dos Yankees ou do Knicks, todos na rua gritando e cantando, principalmente jovens e negros, buzinaço pelas ruas, festa no Harlem, em Times Square, na Rockfeller Plaza.
Um rapaz branco entrou no metrô em que eu estava desejando "Happy Barack Obama"s day" ("Feliz Dia de Barack Obama"). E quando um japonês desavisado não entendeu a comemoração, o rapaz fez um gesto indicando que ele estava "fora do mundo".
Acho que esse foi o sentimento que fez com que os jovens e as minorias comparecessem em massa às urnas, apesar de não ser obrigatório votar aqui nos Estados Unidos: o de estar contribuindo para mudar o país e o mundo, como Obama ressaltou em um de seus recentes discursos.
Não vai haver nenhuma mudança fundamental nas posições do governo americano, o que vai haver é uma mudança fundamental de visão de mundo. O diálogo no lugar da força, a visão multipolar no lugar da hegemonia.
O entendimento de que no mundo moderno não é mais possível ser a primeira potência sem dar espaços para outras potências emergentes que têm papel importante em temas ou setores políticos e econômicos.
Nesse novo mundo diversificado e multipolar, será preciso dividir o poder e pensar políticas públicas que sejam boas para todos, e não apenas para um país.
A preocupação de Obama com a ecologia e com a utilização de combustíveis renováveis menos poluentes, obedece a essa postura universalista, que é o contrário do egoísmo que prevalece nos Estados Unidos, que levou o presidente Bush a não assinar o Tratado de Kioto, no pressuposto de que seria prejudicial aos interesses das empresas americanas.
Obama parece já ter entendido que os interesses americanos só serão atendidos se o interesse da comunidade internacional for também respeitado. Enquanto o presidente Bush alega querer disseminar a democracia pelo mundo e utiliza guerras para impor o regime, Obama quer mostrar as vantagens da democracia através do exemplo e do respeito ao outro.
Não é possível arvorar-se em defensor da democracia e permitir a existência de uma prisão como Guantánamo, por exemplo.
Uma abertura maior para o mundo, transformar os Estados Unidos em um país amado, e não temido, pelo resto do mundo, será uma conseqüência natural do governo "pós-racial" e até mesmo suprapartidário anunciado por Obama em seu discurso da vitória em Chicago.
Obama entendeu que a sociedade americana havia mudado, e fez a campanha toda baseada no pressuposto dessa mudança, ao contrário de John McCain, que abriu mão de sua história de republicano independente para aderir à tendência mais obscura e radical do Partido Republicano.
Jogando na suposição de que os preconceitos e os temores da América profunda prevaleceriam, que o receio do novo e do desconhecido faria com que os antigos fantasmas, inclusive raciais, lhe trouxessem a vitória, McCain, se não estimulou, não quis ou não pôde controlar a campanha negativa que tentou colocar Obama como um risco para o país, não pela experiência, mas pelo suposto radicalismo político.
O eleitorado americano superou dois traumas nessa votação avassaladora por Obama: o político, explicitado na campanha radicalizada dos republicanos, e o racial, uma ameaça latente escondida pelas pesquisas.
O exemplo maior da superação desse trauma aconteceu com a vitória de Obama em Virgínia, berço da Guerra Civil americana em 1861, um estado que desde 1964 não votava nos democratas em eleições presidenciais. Da mesma forma que os outros estados do sul, a Virgínia abandonou os democratas após a Presidência de Lyndon Johnson, demonstrando toda a insatisfação com as reformas dos direitos civis.
Virgínia, que nas últimas décadas passou de uma sociedade rural e conservadora para um estado mais urbanizado e com pluralismo político, ontem marcou sua presença nessa mudança do mapa eleitoral americano "pós-racial".
Obama fez justamente o contrário de McCain, se conectou com a nova sociedade americana e usou a revolução tecnológica para interagir com seus eleitores, não apenas para inovar no recolhimento de fundos para a campanha, mas para informar de seus passos e comungar pontos de vista.
Nesse novo mundo tecnológico, no qual a sociedade global tem agora os meios para exprimir seus anseios e suas convicções independentemente das instituições políticas e do sistema de comunicação de massa, Obama impôs-se primeiro ao eleitorado americano, e também ao mundo, que desejava sua vitória.
Essa nova maneira de encarar o mundo em que vivemos, preenchendo o vazio de representação com a interação com a sociedade civil, foi o que legitimou a ação política de Obama, ancorado nas mobilizações espontâneas usando sistemas autônomos de comunicação.
Internet e comunicação sem fio, como os telefones celulares, fazendo a ligação horizontal de comunicação, provêem um espaço público como instrumento de organização e meio de debate, diálogo e decisões coletivas, ressalta o sociólogo Manuel Castells, um dos principais teóricos dessa sociedade em rede utilizada com maestria pela campanha de Barack Obama.
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