- Valor Econômico
O axioma de Pelé, mostram eleições, carece de fundamento
Análise das eleições desde a redemocratização mostra que nenhum resultado surpreendeu a lógica. Esta é dada pela economia, a sensação de bem-estar da população, a popularidade do governante da hora, a memória histórica (a influência de fenômenos como o getulismo e o lulismo). Cada um desses aspectos tem um peso, que varia de acordo com as circunstâncias, principalmente, as econômicas.
A máxima "brasileiro não sabe votar" é perversa e equivocada. O axioma, atribuído a Pelé, parte da ideia de que a baixa escolaridade faz as pessoas votarem erradamente. A escolaridade restrita é observada mais entre os pobres, logo, diz a doutrina, pobre não sabe votar. Por esse raciocínio, os remediados e ricos, por serem instruídos, sabem escolher seus representantes.
Durante muito tempo, seguindo o axioma de Pelé, os eleitores nordestinos, entre os quais é maior o analfabetismo e o semianalfabetismo, elegeram políticos de direita ("coronéis", "oligarcas" etc.). Já os eleitores do Sudeste e do Sul optaram, majoritariamente, pela esquerda. Depois de uma ditadura que nos impediu de votar para presidente por 25 anos (29, uma vez que o último pleito ocorrera em outubro de 1960), o caminho pela esquerda seria o mais óbvio no retorno da eleição direta, como percebeu Lula ao fundar o PT, em fevereiro de 1980.
Na primeira década e meia desde 1989, eleger políticos de esquerda era, considerando o axioma de Pelé, o certo a fazer, porque apenas o povo pobre e sem estudo votava na direita. Como o PT desejava ser a nova esquerda - mantendo distância do getulismo, dos comunistas, dos democratas-cristãos e dos sociais-democratas -, foi fundado por sindicalistas do ABC, intelectuais da USP, setores da Igreja Católica identificada com a Teologia da Libertação e por remanescentes da guerrilha que lutou contra o regime militar. Depois, o funcionalismo aderiu como força relevante.
Os grupos que criaram o PT são, por definição, formadores de opinião da classe média urbana. Quando Lula se lançou em 1989, foi visto pelos mais pobres como uma "ameaça". Sua fala grave, a imagem de sindicalista barbudo e cabelo desgrenhado e a defesa de ideias "radicais" serviram à perfeição para que Fernando Collor de Mello, seu oponente no 2º turno da eleição, dissesse que ele era comunista. A propaganda anticomunista no Brasil, é bom lembrar, tinha mais de 50 anos.
Lula conquistou a classe média, mas não o chamado povão. Este preferiu votar em Collor, jovem de porte atlético, rico, sem barba e de cabelo sempre penteado, anticomunista, "combatente destemido" das mordomias dos funcionários públicos e da corrupção. Era falso "outsider", uma vez que originário de uma oligarquia alagoana. Vencida por Collor, aquela eleição reforçou a fé no axioma de Pelé - "pobre não sabe votar porque é inculto e opta pela elite que o engana".
Desde 2006, Lula e o PT prevalecem nas regiões mais pobres e nos setores da classe média urbana identificados com a esquerda desde sempre. Na atual eleição, o Sul e o Sudeste ricos, além do Centro-Oeste próspero do agronegócio, votaram maciçamente no candidato da extrema direita, Jair Bolsonaro (PSL). Alguma coisa está fora da ordem? Não necessariamente.
Independentemente das paixões políticas ou da sabedoria convencional das elites culturais, o conjunto dos eleitores não erra. Não errar significa que, dado o contexto das disputas e o peso dos fatores mencionados anteriormente, o voto da maioria não é ilógico. Senão, vejamos:
1. Eleição de 1989: ao tirar Leonel Brizola do 2º turno, Lula consagra-se como o novo líder das esquerdas, mas, numa eleição conturbada pela hiperinflação, não conquista o povão;
2. Eleição de 1994: Collor fracassa no combate à inflação e perde o mandato em 1992. O vice Itamar Franco assume, forma coalizão e nomeia, em abril de 1993, Fernando Henrique Cardoso ministro da Fazenda. FHC monta equipe para formular o Plano Real, a nova moeda é lançada em 1º de julho e a inflação desaba. Então líder nas pesquisas, Lula perde apoio por causa do real e FHC, jamais eleito para cargo executivo, ganha a disputa no 1º turno;
3. Eleição de 1998: capítulo da crise dos "tigres" asiáticos deflagrada no ano anterior, a moratória da Rússia em meados de agosto faz investidores tirarem US$ 45 bilhões do Brasil, ameaçando o real. FHC apresenta-se como o único capaz de salvar a moeda e vence a eleição no 1º turno.
4. Eleição de 2002: a desvalorização do real no início do 2º mandato tira de FHC o status de salvador do real e sua popularidade cai abaixo de 20%. Em 2001, o golpe fatal: apagões de energia derrubam a economia, abrindo espaço para Lula vencer depois de três tentativas. O Lula barbudo que usava camisetas suadas deu lugar a outro, vestido por Ricardo Almeida, barba feita e cabelo cortado, aberto a alianças e remetente da "Carta aos Brasileiros";
5. Eleição de 2006: Lula cumpre o que prometera - doma a inflação, ganha a confiança dos empresários, paga a dívida com o FMI, faz o país voltar a crescer, cria o Bolsa Família e aprova reforma da Previdência indigesta para o funcionalismo. Mesmo com o escândalo do mensalão, ganha a disputa e se consagra como o novo "pai dos pobres";
6. Eleição de 2010: com mais de 70% de popularidade, economia crescendo ao maior ritmo (7,5%) desde 1986 e inflação sob controle, Lula pede aos eleitores que votem em Dilma Rousseff. Seu desejo é atendido e o Brasil elege uma mulher pela primeira vez para a Presidência;
7. Eleição de 2014: mesmo tendo chegado ao poder graças à política econômica de Lula, Dilma muda quase tudo e, assim, produz a maior recessão da história do país, parte de estagnação que já dura cinco anos. Começa a disseminar-se avassalador sentimento antipetista. Dilma impede Lula de se candidatar em seu lugar, radicaliza o discurso populista, promete o que não cumprirá e vence pleito difícil;
8. Eleição de 2018: Dilma frustra seus eleitores, rompe com aliados, a crise se aprofunda e ela sofre impeachment em maio de 2016. Seu vice, Michel Temer, assume, nomeia notável equipe econômica e começa a fazer os ajustes necessários. Um ano depois, é desmoralizado por grampo feito pelo empresário Joesley Batista, a serviço do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot. A "queda" de Temer fortalece a retórica anti-tudo-que-está-aí, trunfo do candidato Jair Bolsonaro (PSL). Fernando Haddad (PT), por sua vez, só chega ao 2º turno porque o lulismo, apesar da prisão de Lula, está vivo. Haddad tenta ser o anti-Bolsonaro, mas isso parece ser insuficiente.
Todos os enredos eleitorais deram a lógica. É evidente que um eleitor mais bem informado pode ter maior capacidade de discernimento. O axioma de Pelé, porém, carece de fundamento.
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