Amir Labaki* / Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Dois documentários se empenham em pesquisar dimensões distintas do regime militar brasileiro. “Tá Rindo de Que?” recupera estratégia do humorismo durante o período; já “Pastor Cláudio” traz o depoimento de um ex-agente do sistema de repressão
Com o intervalo de duas semanas, alcançam as telas dois documentários empenhados em pesquisar dimensões distintas da ditadura militar vigente no Brasil entre 1964 e 1985. Já em cartaz, "Tá Rindo de Quê?", de Cláudio Manoel, Álvaro Campos e Alê Braga, recupera fases e estratégias diversas do humorismo profissional durante aquelas duas décadas. Em "Pastor Cláudio", de Beth Formaggini, que estreia na quinta-feira, o depoimento sereno e arrependido de um ex-agente do sistema de repressão da ditadura militar detalha métodos e episódios da violência de Estado.
Estruturado a partir de entrevistas e materiais de arquivo, "Tá Rindo de Quê?" concentra-se principalmente em criações humorísticas para a imprensa e para televisão, com certa liberdade cronológica. Apenas uma piscadela é dada para o teatro, com a recuperação da memória dos inícios do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, em fins dos anos 70. Outra é dada para o cinema, num quase verbete sobre as pornochanchadas.
A perspectiva é plenamente carioca, com ênfase na renovadora experiência de "O Pasquim", cujo cinquentenário se completa em junho próximo, e dos programas cômicos da Rede Globo, notadamente "Faça Humor, Não Faça a Guerra" e "Chico City". Charges de Claudius, Chico Caruso, Henfil, Jaguar, Millôr Fernandes e Ziraldo (com inexplicável ausência do gaúcho Luis Fernando Veríssimo) vencem o pedágio do tempo, mantendo-se hilárias até hoje. Igual vitalidade histriônica reencontra-se em quadros protagonizados por nossos reis da comédia televisiva, Agildo Ribeiro, Chico Anysio, Jô Soares e Renato Aragão à frente, com Ronald Golias sendo mais citado do que efetivamente rememorado.
Desses, o único depoimento inédito é o de Ribeiro, pouco antes de sua morte, em abril do ano passado. Retraça-se a curva histórica do humor na TV principalmente com as certeiras lembranças de José Bonifácio de Oliveira, o Boni todo-poderoso da TV Globo no período, e do diretor Daniel Filho. Para além da história da emissora, destacam-se as recordações de Carlos Alberto de Nóbrega sobre as históricas "A Família Trapo", da TV Record; e "A Praça É Nossa", do SBT, herdeira da "Praça de Alegria" criada em 1957 por seu pai, Manuel de Nóbrega.
"Pastor Cláudio" representa uma experiência fílmica em outro polo. Num estúdio preto, iluminado por projeções gráficas e audiovisuais, o atual pastor evangélico e ex-delegado da Polícia Civil do Espírito Santo Cláudio Guerra empunha uma Bíblia enquanto responde às perguntas do psicólogo Eduardo Passos, ligado aos movimentos em defesa dos direitos humanos.
O roteiro da entrevista busca sintetizar e desenvolver as macabras revelações feitas por Guerra a partir do início desta década. As principais encontram-se em seu depoimento ao livro "Memórias de Uma Guerra Suja" (Topbooks, 2012), de Rogério Medeiros e Marcelo Netto, à Comissão Nacional da Verdade (2012-2015) e ao jornalista Alberto Dines, em duas participações no Observatório da Imprensa na TV Brasil.
Logo compreende-se a referência por Dines à "banalidade do mal" captada por Hannah Arendt durante o julgamento em 1961 do nazista Adolf Eichmann (1906-1962). Guerra discorre com tranquilidade sobre as execuções e cremações de corpos de militantes de esquerda, armada ou não, que pessoalmente realizou na década de 70.
"Era impessoal", "não sentia nada", "minha bandeira era cumprir ordens", afirma. "Eu nunca participei de tortura", busca modular. "Eu falo em primeira pessoa", frisa para corroborar a veracidade de suas respostas.
Cláudio Guerra desfia nomes, patentes, endereços e datas. Para demonstrar a lógica do sistema de violência do Estado durante o regime militar, esclarece episódios como as execuções de lideranças do PCB na chamada Operação Radar entre 1974 e 1975, o assassinato da estilista Zuzu Angel em 1976, os atentados contra a sede da OAB no Rio em 1980 e, no ano seguinte, contra o Riocentro por opositores à abertura democrática de dentro do próprio regime.
Em seu ascetismo estético, "Pastor Cláudio" potencializa o impacto de um testemunho direto sobre a face mais odiosa da ditadura militar de 1964. Mesmo com sua irregularidade, "Tá Rindo de Quê?" abre veredas e comprova, como defendia Orwell, que fazer rir é coisa séria. Antes que se reescreva a história, é preciso escrevê-la. Ou filmá-la.
*Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.
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