O governo de Jair Bolsonaro vem mantendo uma relação conflituosa com a realidade. O presidente e alguns de seus assessores, incluindo aí seus filhos, parecem incapazes de refletir de modo racional sobre os problemas do País. Suas reações indicam um consistente alheamento, situação em que referências concretas são ignoradas ou, pior, são consideradas um entrave para a realização de sua visão de mundo, ou um inimigo a ser enfrentado.
Nos devaneios de Bolsonaro, dos filhos e dos ministros do que se chama equivocadamente de ala “ideológica” do governo, a realidade é a inimiga a ser combatida, e com frequência o núcleo duro do poder bolsonarista trava essa guerra cultivando entre si fantasias sobre complôs de ateus esquerdistas, profecias apocalípticas e missões divinas.
A ilustrar esse desvario, Bolsonaro costuma recitar o versículo bíblico “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32). Em sua excêntrica exegese, Bolsonaro dá a entender que seria o portador da “verdade” revelada por Deus, num missão para “libertar” o País. Quando diz que não sabe ser presidente e não sabe como foi eleito, Bolsonaro, ao contrário de se desmerecer, reforça o mistério em torno de sua “escolha” para governar o País neste momento. “Estou cumprindo uma missão de Deus”, disse Bolsonaro, ainda durante a campanha.
Quase todos no entorno do presidente não apenas aparentam crer firmemente nessa visão, como a alimentam entre si e nas redes sociais, uma forma de proteger o governo do mundo real – aquele em que os atos têm consequências.
Movido a impulsos claramente desordenados, o presidente Bolsonaro desconsidera os limites concretos de sua atuação – legais, institucionais e econômicos – e parece convencido de que sua vontade basta para tornar realidade o que não passa de fantasia. Quando confrontado com os fatos – e eles existem, a despeito das crenças do presidente –, Bolsonaro os denuncia como “fake news”. A imprensa, cuja função é retratar a vida como ela é, torna-se naturalmente inimiga de quem prefere o conforto de suas convicções.
Assim, Bolsonaro julga-se livre de qualquer amarra – ética, legal ou racional – para impor suas vontades. A cada dia o presidente, os filhos e alguns de seus ministros dão inquietantes mostras de alienação – em alguns momentos, acarretando apenas constrangimento; em outros, graves riscos para o País.
Há poucos dias, por exemplo, o presidente achou-se com poder para pedir que o Banco do Brasil (BB) reduzisse suas taxas de juros – segundo ele, seria uma medida “patriótica”. Na semana passada, Bolsonaro já havia interferido no BB, ao mandar suspender uma campanha publicitária da instituição, por considerá-la inadequada. Nos dois casos, houve intromissão descabida nas decisões do banco.
Não à toa, depois de suas declarações sobre os juros do BB, as ações do banco despencaram, pois ninguém gosta de investir em negócios cujo planejamento esteja sujeito não às condições de mercado, mas às idiossincrasias do presidente da República – que, aliás, não manda no banco.
Alguns dias antes, Bolsonaro já havia causado prejuízo semelhante à Petrobrás, também por interferência indevida em sua política de preços.
Assim, o presidente Bolsonaro e alguns de seus ministros, em pouco mais de quatro meses de governo, vêm colecionando decisões autoritárias, fruto desse voluntarismo. A área da educação tem sido particularmente atingida, em razão da ofensiva que o governo empreende contra um certo “marxismo cultural”.
Outro terreno em que a ideologia substituiu o bom senso é o da política externa, hoje pautada por discípulos de um ex-astrólogo que vive na Virgínia. Conforme essa doutrina, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, é o “salvador do Ocidente”, razão pela qual é preciso alinhar o Brasil incondicionalmente aos americanos e desprezar organismos multilaterais. Não se sabe o que o Brasil ganhará com isso, mas sabe-se o que corre o risco de perder: o respeito internacional e boas oportunidades de negócios.
Mas isso não importa. Afinal, para quem se faz conhecer por “mito” – designação comum a narrativas fantasiosas –, nada mais natural do que fazer de devaneios a própria realidade.
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