- O Estado de S. Paulo (18/3/2020)
Embora o governo brasileiro esteja muito longe de reconhecer a gravidade do momento, há os que começam a pensar no que fazer
Acompanho as análises nos jornais brasileiros sobre a ruptura inédita causada pela pandemia e me causa angústia a falta de urgência. Não me refiro apenas à irresponsabilidade atroz do presidente da República, que põe em risco a vida das pessoas, mas também ao fato de que poucos no Brasil se deram conta do que é essa crise.
Trata-se de uma parada súbita da economia mundial como jamais vimos. E, ao que tudo indica, não será uma parada súbita de curta duração, como a observada após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, ou como aquela proveniente da crise financeira de 2008. Não se trata apenas da incerteza atrelada à epidemia, mas das medidas de saúde pública que estão sendo tomadas mundo afora. Para desacelerar a propagação do vírus, fronteiras, escolas, universidades, bares, restaurantes, escritórios estão sendo fechados. Alguns países impuseram toques de recolher. As companhias aéreas já sofrem o baque do isolamento e do distanciamento social. A economia mundial sente os primeiros efeitos da parada súbita.
A crise será de longa duração. Para desacelerar a progressão da epidemia e “achatar a curva”, como o esforço pela desaceleração ficou conhecido, as medidas inéditas estarão conosco por vários meses. Uma vez alcançado o pico da epidemia, serão mais vários meses de semiparalisia até que seja seguro começar a abandonar as medidas excepcionais de saúde pública. Será um recomeço gradual. A não ser que tenhamos rapidamente uma vacina – o que hoje não parece provável – estamos falando, possivelmente, de mais de um ano de parada quase total do mundo. Para 2020, o quadro de retração global é certo.
Registraremos, pela primeira vez em muitas décadas, uma queda do PIB global. É por esse motivo que países começaram a adotar políticas extraordinárias para atenuar os efeitos da crise. Em tempos de calamidade inédita e risco de depressão, metas fiscais e a evolução da dívida tornam-se absolutamente irrelevantes. Não se compara o desajuste fiscal proveniente do que é necessário agora ao quadro de depressão que se instaurará se as medidas forem insuficientes ou se governos forem contaminados pela inação. A inação mata.
Embora o governo brasileiro esteja muito longe de reconhecer a gravidade do momento – as medidas recém-anunciadas por Paulo Guedes são insuficientes – há os que começam a pensar no que fazer. Há mais de uma semana tenho defendido o que considero necessário para enfrentar a crise de longa duração a abater em breve o Brasil, que entra nela a partir de uma situação econômica muito frágil.
São elas: suplemento emergencial imediato do benefício do Bolsa Família em pelo menos 50%; a instituição de uma renda básica universal mensal no valor de R$ 500 para os 36 milhões do Cadastro Único que não recebem Bolsa Família – esses são os grupos mais vulneráveis; a abertura de R$ 50 bilhões em créditos extraordinários para a saúde, com a possibilidade de aumentar esse montante; acelerar e dar maior flexibilidade à aprovação do seguro-desemprego; disponibilizar recursos emergenciais para os setores mais afetados pela crise no valor de pelo menos R$ 30 bilhões; abertura de linhas de crédito do BNDES para micro, pequenas e médias empresas. Por fim, recomendo um programa de investimento público em infraestrutura para sustentar a economia no médio/longo prazo com a utilização de recursos do BNDES.
As medidas de caráter imediato – saúde, proteção social e setorial – somam cerca de R$ 310 bilhões ao longo de 12 meses, ou uns 4% do PIB. Isso é metade dos cerca de 8% do PIB que gastávamos com os juros altos de 14% há poucos anos. Embora seja um montante considerável, o mais arriscado nesse momento não é o que vai acontecer com o déficit ou com a razão dívida/PIB – até porque não há investidor no mundo, hoje, preocupado com a sustentabilidade das contas públicas. Para viabilizar o que proponho, precisamos da imediata flexibilização da meta fiscal e da suspensão do teto de gastos por um período de dois anos. Deixo claro que o teto é importante para sustentabilidade fiscal de longo prazo – mas, o momento é de calamidade.
É claro que, se a situação melhorar, se uma vacina for encontrada, se os cientistas encontrarem um tratamento eficaz para a síndrome respiratória aguda que se manifesta nos casos mais graves da doença, os montantes que sugiro poderão ser reduzidos. Mas, na situação em que estamos é melhor errar para mais do que para menos. Errar para menos significa pôr em risco a vida de dezenas de milhões de pessoas. Manter o pensamento encaixotado, hoje, é fatal.
* Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
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