quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Zeina Latif - Nada de novo, mas não convém abusar

O Globo

O descompasso entre a promessa da Fazenda e as expectativas dos analistas não significa que o governo tenha grande liberdade para alterar metas

Temos mais um capítulo da novela do arcabouço fiscal.

Vale uma breve retrospectiva. Lula e seu time político negociaram no Congresso a PEC da Transição, que expandiu bastante os gastos em 2023, contrariando o padrão usual de se começar o mandato com maior disciplina fiscal, para afrouxar depois. Tudo isso antes mesmo de anunciar Fernando Haddad como ministro da Fazenda.

É possível que essa tenha sido uma tentativa de preservar o futuro ministro do desgaste por defender mais gastos. Haddad, por sua vez, em sua posse, afirmou que não aceitaria “um resultado primário que não seja melhor do que os absurdos R$220 bilhões de déficit previstos no Orçamento para 2023”. Jogo combinado?

A recente afirmação de Lula sobre dificilmente ser cumprida a meta de zerar o déficit primário (exclui pagamento de juros) em 2024 pode até não seguir o mesmo enredo, até porque desgastou o ministro. Mas acabou transferindo para o presidente a responsabilidade da mudança das metas fiscais, consideradas, de largada, ambiciosas pelos analistas de mercado, dada a escolha do governo por mais gastos.

Vale lembrar que a PEC da Transição foi o gatilho para a piora das projeções de indicadores fiscais. Já o anúncio do arcabouço fiscal não mudou o quadro. As projeções atuais são até ligeiramente piores em relação àquelas observadas pouco antes do anúncio das metas, no final de março; isso apesar da elevação das projeções de crescimento do PIB, que impactam favoravelmente os indicadores fiscais.

Projeta-se um déficit primário de 0,8% em 2024; equilíbrio orçamentário e superávit fiscal ficariam para um próximo governo. Os números destoam da promessa de Haddad de ajuste fiscal até entregar um superávit de 1% do PIB ao final do governo — insuficiente, porém, para estancar o crescimento da dívida pública como proporção do PIB.

As iniciativas da Fazenda, portanto, não mudaram essencialmente a avaliação do risco fiscal, em que pese a boa reação dos mercados ao anúncio do arcabouço, por afastar o risco de cenários extremos de descontrole fiscal.

Não há muita novidade aqui. Era sabido que o grande teste de Haddad seria colocar o arcabouço fiscal de pé. Como discuti neste espaço, a novela seria longa, e a mudança de metas ocorreria, cedo ou tarde, de modo a evitar o acionamento de freios nos gastos.

Trata-se de um governo que busca esticar a corda dos gastos o quanto puder. Não há convicção suficiente sobre a importância da disciplina fiscal e há pressões de todos os lados. A cada dia vem uma nova medida do Congresso. O país insiste no mau hábito de reduzir o zelo na gestão fiscal nos períodos de “calmaria”.

O fato de não haver novidade não significa que o risco fiscal não pode piorar ainda mais. O descompasso entre a promessa da Fazenda e as expectativas dos analistas não significa que o governo tenha grande liberdade para alterar as metas. Afinal, significaria jogar a toalha precocemente, o que não é neutro na formação de expectativas do mercado, que poderão se deteriorar adicionalmente nesse caso.

As experiências de isolamento de Joaquim Levy e Paulo Guedes na Fazenda merecem reflexão. Guedes ficou, mas desgastado. Com os vários furos no teto, o quadro só não azedou de vez por causa das surpresas positivas com a arrecadação em 2021 e 2022, inflada pelo impacto da alta das commodities sobre os preços industriais e a receita de dividendos, o que já se reverteu.

Não é um quadro de tempestade perfeita, mas convém não abusar da sorte, pois tampouco este é um cenário a ser descartado. Os juros mais elevados no mundo são alerta, por si só, quanto aos limites para a redução tempestiva da Taxa Selic pelo Banco Central. Enquanto isso, o grosso do ciclo de desinflação, puxada pela queda de preços de commodities, já se completou, como se reflete na volta da inflação no atacado para o campo positivo. Enquanto isso, as expectativas de inflação seguem acima da meta.

Se para o investidor internacional, o Brasil não chega a assustar — os problemas fiscais se espalham no mundo e o risco geopolítico não passa aqui por perto —, internamente as classes médias ainda estão no aperto, com elevada inadimplência, e os pedidos de recuperação judicial das empresas seguem em alta — a Bolsa brasileira não está defasada em relação aos pares à toa.

Em tempo, Haddad não é um ministro facilmente substituível.

 

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