Correio Braziliense / Estado de Minas
O trauma vai muito além dos
600 mil mortos por covid-19. Milhões de pacientes passaram pelas enfermarias. O
que mudou no modo de vida e na forma de pensar dessas pessoas?
“Diga- me, mãezinha, têm morrido camponeses
seus? — Nem me fale paizinho — dezoito homens! Disse a velha com um suspiro. —
E tudo gente boa que morreu, bons trabalhadores. É verdade que nasceram outros
depois, mas o que valem? É tudo criançada; mas o fiscal chegou, mandando pagar
a taxa por alma, da mesma forma. Os homens estão defuntos, mas eu tenho que pagar
como se estivessem vivos.”
No livro Almas mortas, o escritor ucraniano
Nikolai Gogol ironiza a servidão russa na época do czar Pedro, o Grande, que
resolveu cobrar impostos sobre todas as almas. Cobrava até de quem não era
católico, apesar de não ser nada religioso. Os proprietários de terras eram
obrigados a pagar os impostos pelo número de servos, inclusive os que haviam
morrido. Pável Ivánovitich Tchítchicov, o personagem central do romance,
resolve ganhar dinheiro com isso.
Charmoso, educado, sagaz e boa pinta, usa de convencimento para enganar pequenos proprietários. Aproveita-se da burocracia russa ineficiente, e do regime de servidão e da miséria, para hipotecar almas como se todas estivessem vivas e, com isso, obter lucro. Se o proprietário vende uma alma, para Tchitchicov, o vendedor não perde nada. Pelo contrário, ele economiza no imposto que teria que pagar e ainda ganha uma quantia em rublos. Quanto ao comprador, essas almas mortas passarão a fazer parte do seu patrimônio.
O plano de Tchitchicov é simples. Ao
comprar almas mortas a partir de pequenos proprietários de terra, esses servos
permanecem em livros dos fazendeiros até o próximo recenseamento e, muito
embora mortos, são tributáveis. Ao comprá-los, aliviam a carga fiscal dos
proprietários. Seu plano é instalar esses servos mortos nas listas fiscais de
uma propriedade distante, em que ele vai, então, ser capaz de obter uma
hipoteca generosa do governo e sair com uma pequena fortuna. Certos aspectos da
pandemia de covid-19 aqui no Brasil lembram o romance de Gogol.
Ultrapassamos a marca de 600 mil mortes por
covid-19, mantendo, porém, uma média de 500 óbitos por dia. Na sexta-feira,
quando atingimos esse patamar, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, deu uma
entrevista coletiva minimizando o fato, para destacar que: (1) o governo está
empenhado em viabilizar a terceira dose da vacina contra a covid-19 e (2) um
número muito maior de pessoas diagnosticadas com a doença se recuperou. De
fato, cerca de 20,6 milhões de pessoas tiveram covid-19 e sobreviveram; no
momento, 285.032 estão enfermas.
O trauma coletivo
A forma burocrática da entrevista e a falta de empatia do ministro estão em
linha com a política sanitária do governo federal. Contaminado na viagem do
presidente Jair Bolsonaro à ONU, mesmo sem sintomas, teve que fazer três
semanas de quarentena em Nova York, para voltar ao Brasil. Sua desastrosa
atuação durante a pandemia também está sendo investigada pela CPI do Senado. Os
senadores deverão concluir seus trabalhos nas próximas semanas e, segundo o
relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), as consequências serão inquéritos
civis e criminais, a serem conduzidos pelo Ministério Público, a Polícia
Federal e o Tribunal de Contas da União (TCU). O relator proporá a demissão do
ministro Queiroga e/ou a abertura de um processo de impeachment contra o
presidente Jair Bolsonaro, por crime de responsabilidade. Estamos no Brasil, a
um ano das eleições, e o nosso país, como dizia o maestro Antônio Carlos Jobim,
não é para principiantes: nada de demissão nem impeachment.
Nossa realidade vai além das obras de
ficção. Muita incompetência e espertezas macabras foram desnudadas pela CPI da
Saúde, porém, nada se aproxima tanto da história de Gogol como o caso macabro
da Prevent Sênior, empresa que se especializou no atendimento de idosos, em
cuja estratégia de tratamento, além do “kit cloroquina”, nos casos graves,
segundo denúncias de médicos e pacientes, os “cuidados paliativos” seriam uma
espécie de eutanásia não consentida, para dizer o mínimo. O trauma coletivo da
pandemia no Brasil é irreversível, principalmente para os familiares e amigos
desses 600 mil mortos por covid-19.
Graças ao SUS, milhões de pacientes
passaram pelas enfermarias dos hospitais, alguns com longas internações. O que
mudou no modo de vida e na forma de pensar dessas pessoas? O escritor alemão
Thomas Mann, cuja mãe era brasileira, ao descrever as polêmicas entre pacientes
num sanatório de Davos, nos Alpes suíços, fez um mosaico do que estava
acontecendo na Europa à beira da I Guerra Mundial. Na Montanha mágica, a
tuberculose muda a noção de tempo durante a internação, enquanto a vida segue o
curso trágico da História e médicos charlatães oferecem aos ricos pacientes
falsas opções de cura. Naquela época não existia a penicilina; hoje, temos
também as vacinas contra a covid-19.
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