O Globo
Nem nos mais pessimistas cenários esse
número apareceu. Nem nos piores pesadelos o país imaginou que poderia perder
600 mil vidas na pandemia. Se tentássemos escrever uma distopia, algum enredo
de horror político, o presidente seria assim como o que governa o Brasil. Não
visitaria hospitais, não consolaria as vítimas, proibiria as medidas de
precaução, induziria o uso de um remédio ineficaz e impediria que seus
ministros e assessores socorressem a população. E mentiria todos os dias. O que
nós vivemos não estava escrito, previsto ou calculado. As marcas ficarão. Como
disso o cantor e compositor Criolo, “a pandemia nunca vai acabar para quem
perdeu um ente querido.” Ele perdeu a irmã.
Há quem diga que a CPI não dará em nada, que se perdeu, que poderia ter pensado em outra estratégia. Falta nessa análise tanto a visão global quanto a dos detalhes. A CPI foi o desabafo do país, de todos os que discordam dos rumos aviltantes do governo. Nos detalhes, a Comissão revelou um mundo de informação que apenas intuíamos e que agora estão expostas, irrefutáveis. Se isso vai se transformar em alguma punição contra os culpados não depende da Comissão Parlamentar. Se autoridades policiais, políticas e dos órgãos de controle fingirem não ver, serão cúmplices. Se o procurador-geral da República, Augusto Aras, continuar inerte e sinuoso, será cúmplice. Diante de todos os que falham neste momento dilacerante do Brasil estará uma lápide com 600 mil nomes.
Há inúmeros fatos que o país não sabia e
que ficou sabendo durante as sessões dos últimos seis meses da Comissão
Parlamentar. Havia suspeita, mas agora há certeza de que o governo colocou em
prática a tese criminosa da imunidade de rebanho. O presidente sempre insistiu
em provocar aglomerações, desacreditar as medidas de proteção e sabotar as
vacinas. Antes, tudo podia ser entendido como erros de avaliação e de gestão.
Soube-se na CPI que era mais que isso, aquele comportamento delinquente era um
projeto. Bolsonaro queria que o número máximo de brasileiros fosse contaminado
porque testava em nós a teoria perversa de que se mais gente adoecesse mais
rapidamente o país estaria imunizado. Bolsonaro conspirou contra a saúde dos
brasileiros em gabinete paralelo, com o apoio de empresários negacionistas,
ministros sabujos e invertebrados.
A CPI iluminou o que se passava dentro do
Ministério da Saúde. Não era apenas um caso de incompetência. Era roubo. Havia
rivalidades entre grupos no comando do Ministério, mas todos tinham o mesmo
propósito: obter vantagens financeiras na negociação da vacina. Por isso
fechavam as portas à Pfizer, sabotaram a Coronavac e eram atenciosos com os
atravessadores e suas propostas mirabolantes. O presidente foi informado das
tramoias, admitiu que suspeitava do seu líder na Câmara, mas nada fez e nem
tirou o líder. Institutos bolsonaristas, como o Força Brasil, financiado pelo
empresário Otávio Fakhoury, difundiam fake news contra vacina enquanto tentavam
vender imunizantes para o Ministério da Saúde. Luciano Hang mostrou ser ainda
mais abjeto do que se pensava.
O presidente teve o conluio de pelo menos
dois planos de saúde, alguns médicos, alguns empresários, do Conselho Federal
de Medicina, de generais submissos, dos políticos da base, para mentir e levar
brasileiros à morte. Milhares de mortes teriam sido evitadas se o governo fosse
outro. A Prevent Senior se transformou em campo de experimentação e extermínio,
e a Agência Nacional de Saúde Suplementar, que tem o dever de fiscalizar os
planos, soube disso apenas pela CPI. Bolsonaro e seus cúmplices tentaram mudar
a bula da cloroquina e foram impedidos pela Anvisa. A vacinação ocorreu no país
pela pressão da imprensa, pela luta do pessoal da Saúde, pelo esforço de
governos estaduais, principalmente o de São Paulo, e ganhou velocidade por
causa da CPI.
A lista das revelações da Comissão
Parlamentar de Inquérito instaurada no Senado é enorme. O país parou para ver o
trabalho dos senadores e das senadoras. Atrás de cada pergunta havia estudo,
apuração e a dedicação dos assessores. Os méritos da CPI superam em muito os
erros cometidos durante as investigações. A CPI nos deu clareza num tempo de
brumas, nos entregou verdades na era das mentiras oficiais. Os resultados são
matéria-prima para o próprio Congresso, o Ministério Público e a Justiça.
Principalmente a CPI honrou os nossos 600 mil mortos.
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