Valor Econômico
Guedes cumpriu o velho papel de vender
sonhos a uma elite econômica desiludida
O debate econômico marcou profundamente o
último século da política brasileira. Isso se deu de forma tão acentuada que
existiram momentos, raros, em que Ministros da Fazenda foram tão importantes,
que acabaram emprestando legitimidade ao Presidente da República. No regime
militar, quando mesmo os setores mais conservadores começavam a ver abalada sua
fé na ditadura, Delfim Neto usava o seu "milagre" para dar uma
sobrevida ao governo dos generais. Até Getúlio Vargas buscou acalmar as elites
produtivas no seu governo constitucional, dando a chave do tesouro a Horácio
Lafer, um príncipe progressista da indústria paulista que prometia uma
conciliação entre desenvolvimentismo e liberalismo. Paulo Guedes entrou nessa
seleta lista ao ingressar na "Aventura Bolsonaro", descendo do
pedestal de uma posição consolidada no mercado financeiro para endossar uma
candidatura, no mínimo, curiosa. Justificou sua escolha, prometendo uma
revolução.
A sua tese era simples. Com a redemocratização, o Brasil teria parado de crescer pelo aumento do seu custo de produção, cujo principal fator seria justamente a carga tributária. Dobrado, o custo tributário sugaria recursos da sociedade, a impedindo de investir e crescer. A solução era retomar ao patamar fiscal dos anos 80, reduzindo os tributos a algo perto dos 20% do PIB. Ao ser perguntado como faria isso, Guedes costumava subir o tom e acusava seus entrevistadores de serem pouco ousados, atribuindo, talvez aos jornalistas, as máculas da macroeconomia brasileira. A sua promessa, um pouco abstrata, era de redução dos gastos do governo e dos déficits fiscais com reformas, privatizações e liberalizações de setores da economia. Com um custo menor, os tributos poderiam ser gradativamente reduzidos.
A poucas semanas do fim do terceiro ano do
governo, não é exagero dizer que a gestão Bolsonaro caminha para seu fim. No
próximo ano, todos os recursos intelectuais, políticos e de comunicação serão
usados pelo presidente e seus ministros exclusivamente para os assuntos
eleitorais. Vale perguntar: qual o tamanho da revolução fiscal de Guedes?
Não é segredo para ninguém que o sistema
tributário brasileiro está longe de ser um modelo. Seus problemas não se
resumem à parcela que o Fisco arrecada. O sistema brasileiro é profundamente
injusto e complexo: dezenas de tributos se acumulam, com regras diferentes,
entre os três entes federativos, gerando dúvidas, conflitos e dificuldades
graves para o exercício da apuração e do recolhimento destes. Um estudo do
Banco Mundial mostrou que o Brasil ostenta a nada confortável posição de ser o
184º país - entre 190 - de uma escala que avalia a facilidade de operar o
sistema tributário. A discussão sobre o tamanho da carga tributária nacional é
complexa e envolve um interessante debate sobre o tipo de rede governamental
que os brasileiros entendem que o Estado deve prover. Não há debate,
entretanto, sobre a disfuncionalidade do sistema e a irracionalidade de
submeter cidadãos e empresas a uma operação de dezenas de tributos, com regras,
documentos e obrigações acessórias distintas. Corre por fora, o fato do Brasil
ter um sistema regressivo, onde pobres costumam recolher muito mais do que
parcelas mais favorecidas.
No começo do atual governo, existiam ao
menos dois projetos que prometiam uma reforma estrutural dos tributos. Como
quaisquer projetos dessa natureza, ambas as propostas apresentavam falhas.
Entretanto, eram inegáveis seus acertos: concentração de cobranças, com reunião
dos tributos sobre consumo; padronização das regras de apuração; criação de um
tempo longo de adaptação; maior transparência na aplicação dos regimes de
apuração. Muitos poderiam dizer que as ideias eram descoladas de realidades
específicas do setor produtivo. Não seria uma crítica injusta. Os seus
projetos, ao menos, apresentavam um norte. Poderiam servir como uma espécie de
“documento inicial” de um acerto nacional para a construção de uma mudança
qualitativa do sistema de tributos no Brasil.
Timoneiro da nau bolsonarista, Guedes
resolveu ignorar a existência dos debates que o antecederam, sob a promessa de
entregar à sociedade brasileira, uma nova reforma tributária. O ministro nunca
foi absolutamente claro, mas é de se imaginar que ele pudesse achar as
propostas em curso no Congresso, tímidas demais. Não promoviam a tal revolução
liberal que ele prometera aos brasileiros. Completando 36 meses na cadeira mais
importante da economia do hemisfério sul, Guedes minou os caminhos que já
existiam, desautorizando seus negociadores políticos a trabalharem sobre os
textos em análise na Câmara e no Senado, e não apresentou nenhum novo. A tal
revolução liberal se resumiu à tentativa de unificação de duas contribuições
que já são, na prática, apuradas como uma (PIS e Cofins) e uma mudança pontual
no Imposto de Renda. Ambas deram errado. Talvez a sua mais destacada atuação
tenha sido o seu apoio velado à volta da CPMF, que acabaria não acontecendo
pela falta de coragem do Ministro em defendê-la publicamente.
No final das contas, o governo não foi
capaz de articular sua base para aprovar, nas duas casas, tais propostas. Falta
de apoio político? Não necessariamente. As últimas semanas mostraram que a
máquina de distribuição de benesses do Planalto funciona bem e é bastante apta
a realizar os desejos presidenciais. É o caso do malabarismo fiscal que
permitiu a criação do Auxílio Brasil - a esperada boia de salvação eleitoreira
da gestão. Por que nenhuma mudança fiscal relevante foi aprovada no governo de
Jair Bolsonaro? Talvez a radicalidade do discurso de Paulo Guedes não fosse
real. Cumpriu o velho papel de vender sonhos a uma elite econômica desiludida
e, deve-se dizer, um pouco inocente. Talvez seu propósito tenha se encerrado
logo ali, em outubro de 2018.
O Brasil se prepara para mais uma eleição e
o balanço dos projetos em discussão aparecerá na pauta dos debates nacionais.
Há algo a comemorar na pauta fiscal desta gestão? É possível que sim. Os amigos
de Jair Renan devem ter ficado felizes com a redução do IPI para os videogames
importados. No site do governo brasileiro, uma matéria de agosto valoriza a
redução. Aliás, as reduções. Diz o texto, orgulhoso, que o governo baixou o IPI
sobre os jogos eletrônicos pela terceira vez.
*Paulo Henrique Rodrigues
Pereira é Sócio da LACLAW. Foi visiting fellow do Department of History
(Harvard University) e do Afro Latin-American Research Institute (Hutchins
Center, Universidade de Harvard) para o ano de 2020/2021. É doutorando em
Direito pela USP.
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