segunda-feira, 12 de junho de 2023

Jairo Saddi – Desenrolando

Valor Econômico

Economias capitalistas já criaram programa similar para tornar um sistema financeiro mais saudável para todos

É da maior relevância para o país a nova Medida Provisória nº 1.176, de 6 de junho de 2023, que institui o programa emergencial de negociação de dívidas de pessoas físicas inadimplentes, o “Desenrola Brasil”: num país com 69,4 milhões de inadimplentes, número 7,8% maior do que no ano passado, qualquer programa que busque resolver problemas de crédito com uma reestruturação organizada da inadimplência merece calorosa recepção. O anúncio foi eclipsado pelo programa governamental do carro popular e ainda não está operacional, mas, mesmo assim, o Desenrola passou por muita discussão e diversas resistências foram superadas, inclusive de problemas de compatibilidade de informações e sistema.

Em primeiro lugar, há o princípio do leilão holandês (também conhecido por leilão reverso), leilão em que o lance vai diminuindo gradualmente até que algum participante esteja disposto a pagar pelo maior deságio, num processo cujo lance mínimo para venda geralmente alcança maiores preços do que em outras formas mais tradicionais. Em segundo lugar, também de forma controlada do ponto de vista de recursos públicos, prevê o estabelecimento de um fundo de garantia de operações (FGO), que alinhará incentivos para que os credores possam participar do programa com uma limitação na primeira faixa de até R$ 5 mil no somatório das dívidas financeiras.

Aliás, renegociar dívidas já é prática corrente em todo o sistema capitalista, uma vez que são dívidas de natureza privada que constam do cadastro de inadimplentes e hoje representam o maior obstáculo à concessão do crédito. O crescimento no número de operações ativas das carteiras de crédito dos bancos desaguou numa onda de inadimplência, consequências conjunturais de uma economia volátil sujeita às variações do momento.

A limitação temporal (até 12/22) e de valor que o Desenrola Brasil permite, nesta primeira faixa, não abrangerá dívidas com garantia real ou garantia de financiamento imobiliário ou mesmo funding e risco de terceiros.

O programa limita adequadamente o efeito do moral hazard. O conceito de moral hazard é o da “rede de proteção universal”, segundo o qual sempre haverá mecanismos para resgatar o agente que incorreu em tamanhos riscos (valendo a máxima de que, se o salvamento é automático e independe do risco, maior será a vontade de arriscar-se).

No Desenrola Brasil, parte desses recursos serão destinados ao programa Pronampe, que envolve pessoas jurídicas e, portanto, endereçam os créditos concedidos no período da pandemia. Há uma diferença entre anistia, a concessão de perdão incondicional, e uma renegociação estruturada de dívida, que é o caso aqui.

Do ponto de vista de recuperação da inadimplência, são os agentes financeiros intermediários que devem participar desse leilão e contar com a garantia do Tesouro Nacional, o que beneficiará até 40 milhões de pessoas, na primeira faixa, com mais de R$ 50 bilhões de dívidas negociadas, representando verdadeiro programa social.

A prática bancária apresenta algumas soluções para o tipo de risco de inadimplência em questão, a saber: a exigência de garantias adicionais, a exigência de uma provisão adequada para devedores duvidosos, a limitação das operações com ativos e/ou clientes individuais; o estabelecimento de limites de alavancagem operacional, entre outras. Trata-se de formas tradicionais de lidar com a possível inadimplência de clientes em qualquer tempo e lugar. A participação do Estado na solução do problema tem enfoque diferente e não deveria ter matiz ideológica alguma. A maior parte das economias capitalistas já desenharam algum tipo de programa similar com o único e meritório objetivo de tornar um sistema financeiro mais saudável para todos.

Já na segunda faixa, a estimativa do próprio Ministério da Fazenda é de abranger cerca de 30 milhões de pessoas, e segundo o Secretário de Reformas Econômicas, Marcos Pinto, o Desenrola Brasil estará acompanhado de um programa de educação financeira, opcional, que é fundamental para orientar aqueles que aderirem ao programa a não voltarem a incidir no mesmo comportamento de descontrole financeiro.

O assunto está relacionado ao superendividamento, que representa quase 15% do total de famílias pelo Brasil. Já se falou em criar certos mecanismos dentro de uma estrutura institucional que pudessem flexibilizar o direito absoluto do credor, como, por exemplo, trazer o conceito de primariedade, alterar o indexador de taxa de juros, determinando um limite mínimo abaixo do qual não seria permitido negativar uma única vez o inadimplente etc., mas conquanto não se tenha avançado nisto, o programa mitiga riscos maiores de moral hazard.

O Desenrola Brasil também acerta quando estabelece uma segunda faixa em que pessoas físicas e jurídicas também têm incentivos para negociar suas dívidas, já que estes agentes financeiros poderão apurar, depois, créditos presumidos e créditos tributários, decorrentes de diferenças temporárias. Tais efeitos são importantes, ainda que não inteiramente novos, para certos programas de capital de giro e também de estímulo ao crédito.

Assim, é importante pensar no Desenrola Brasil como um programa de saneamento do consumidor bancário, um programa que visa regularizar e devolver a saúde ao consumidor. Ganham todos, bancos, porque recuperam seus créditos, governo, porque recupera o cidadão, e o próprio consumidor, que recupera a sua reputação, pois, segundo o Instituto Locomotiva, 71% dos inadimplentes acreditam que o “nome limpo” é o seu bem mais precioso.

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