sábado, 6 de julho de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo e Manfred Back - O museu de grandes novidades

CartaCapital

No mercado do dólar, o futuro repete o passado

Todo santo dia, gestores, ­heads de tesourarias e economistas-chefes encontram-se na hora do almoço no restaurante Margem de Garantia, na confraria Milton Friedman, afinal não tem almoço grátis! Ao fundo toca O Tempo Não Para, de Cazuza. Numa dessas mesas, o garçom traz o menu, o prato do dia é onde vamos ganhar dinheiro hoje? Supervariado, cobre, soja, petróleo, ouro, minério de ferro, dólar, juros, ações…. e aí a sobremesa incluída, um terminal online para comprar e vender, na linguagem deles “treidar”!

Prato principal do dia: dólar futuro. Um estagiário levado à confraria indagou: desculpe, o que vem nesse prato?

O garçom, com sua certificação de consultor de investimento, respondeu:

— Cinco contratos de dólar futuro, o mínimo exigido pela B3, cada um tem valor de 50 mil dólares.

O estagiário não entendeu, mas é dólar, as verdinhas?

— Não, prezado cliente, é uma promessa futura de dólar, você compra ou vende apenas o direito do preço futuro do dólar, em reais. Num prazo determinado, você escolhe, a cada fim de mês vence o contrato, quem acertou recebe a diferença em reais, quem errou, paga. Tudo perfeito e garantido pela Bolsa, quem perde paga para quem ganha, em reais.

O estagiário comentou: então é uma aposta?

— O garçom-consultor: prezado cliente, é sempre uma aposta, e veja, total liberdade de escolha, a qualquer hora e momento, a maior invenção financeira, o capital fictício-mor dos ativos financeiros! Sábado e domingo, o cardápio é mais sofisticado, temos hedge e swap para todos os gostos, chamamos de rodízio de operações estruturadas! Só para gente top do mercado!

— Permite um aparte?

— Claro!

— Nos fins de semana, não aceitamos economistas.

— Por quê?, retrucou o estagiário.

— Porque eles não entendem de derivativos, não sabem para que servem, acham que é um menu de segunda, sem importância na saudável dieta da política econômica. Já tentamos explicar, como hoje, mas não entendem! Os modelos que usam não têm dinheiro nem mercado futuro, acredita?

— Acredito! Yes, we can!

— Explicamos, várias vezes, que o volume mundial negociado de derivativos é de cerca de oito a dez vezes maior que o PIB global. E que o preço da soja pode subir ou cair independentemente da demanda do mercado, basta a turma aqui no restaurante decidir que vamos apostar na soja… Os economistas retrucam, mas isso é irracional. Respondemos: é a realidade, o futuro comanda o presente! Eles ficam crédulos, ficam falando dos livros, de financeirização, anomalias do sistema etc., estão fora do menu principal! Veja, até um estagiário de tesouraria entende, não é?, que o que importa é ganhar dinheiro…

Em 8 de março de 1896, Machado de Assis apresenta em sua crônica de A Semana os malabarismos do câmbio:

“O mal do câmbio parece-se um pouco com o da febre amarela, mas, para a febre amarela, a Magnésia Fluida de Murray, que até agora só curava dor de cabeça e indigestões, é específico provado neste verão, segundo leio impresso em grande placa de ferro. Que magnésia há contra o câmbio? Que Murray já descobriu o modo certo de acabar com a decadência progressiva do nosso triste dinheiro e com as fomes que aí vêm, e os meios luxos, os quartos de luxo, e outras consequências melancólicas deste mal?”

O amor ao dinheiro como posse será reconhecido por aquilo que é, uma paixão mórbida, repulsiva

“Um economista apareceu esta semana lastimando a sucessiva queda do câmbio e acusando por ela o ministro da Fazenda. Não lhe contesta a inteligência, nem a probidade, nem o zelo, mas lhe nega o tino e, em prova disso, pergunta-lhe à queima-roupa: “Por que não vende a estrada de ferro Central do Brasil?” A pergunta é tal que nem dá tempo ao ministro para responder que, em primeiro lugar, tais matérias dependem de estudo e, em segundo lugar, que cabe ao Congresso Nacional resolver por último.

“Felizmente, não é esse o único remédio lembrado pelo dito economista. Há outro, e porventura mais certo: é auxiliar a venda da Leopoldina e suas estradas. Desde que auxilie essa venda, o ministro mostrará que não lhe falta tino administrativo. Infelizmente, porém, se o segundo remédio pode consertar as finanças federais, não faz a mesma coisa às do estado do Rio de Janeiro, tanto que este, em vez de auxiliar a venda das estradas da Leopoldina, trata de a comprar para si. Cumpre advertir que a eficácia desse outro remédio não está na riqueza da Leopoldina, porquanto sobre este ponto duas opiniões se manifestaram na Assembleia fluminense. Uns dizem que a companhia deve vinte e dois mil contos ao Banco do Brasil e está em demanda com o Hipotecário, que lhe pede seis mil. Outros não dizem nada. Entre essas duas opiniões, a escolha é difícil.”

Prosseguimos com Machado de Assis, invocando sua crônica de A Semana de 23 de agosto de 1896:

“Vinha eu de um banco, aonde fora saber notícias do câmbio. Não tenho relações diretas com o câmbio; não saco sobre Londres, nem sobre qualquer outro ponto da terra, que é assaz vasta, e eu demasiado pequeno. Mas tudo o que compro caro dizem-me que é culpa do câmbio. ‘Que quer o senhor que eu faça com este câmbio a 9?’, perguntam-me. Em vão leio os jornais; o câmbio não sobe de 9. O que faz é variar; ora é 9 1/8, ora 9 1/4, ora 9 3/8. Dorme-se com ele a 9 15/16, acorda-se a 9 3/4. Ao meio-dia está a 9 1/2. Um eterno vaivém na mesma eterna casa. Sucedeu o que se dá com tudo; habituei-me a esta triste especulação de 9, e dei de mão a todas as esperanças de ver o câmbio a 10.3”.

— Entendo, opero todo dia!

Em seu artigo “Perspectivas Econômicas de Nossos Netos”, Keynes também entendia:

“Precisamos ter a coragem de atribuir à motivação ‘dinheiro’ o seu verdadeiro valor. O amor ao dinheiro como posse, e distinto do amor ao dinheiro como meio para desfrutar os prazeres da vida, será reconhecido por aquilo que é: uma paixão mórbida, um pouco repulsiva, uma daquelas tendências meio criminais e meio patológicas que geralmente são transmitidas com um calafrio ao especialista de doenças mentais”.

Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.

 

2 comentários:

Daniel disse...

Excelente! Como dizem os autores: "é sempre uma aposta"! Logicamente, o mercadófilo Sardenberg não concorda...

ADEMAR AMANCIO disse...

Gostei do último parágrafo,mas é bom ficar no meio termo,se o avarento está errado,o perdulário também está,rs.