O Globo
Polarizar é, como tristemente testemunhamos,
um modo de esvaziar o outro lado de razão
Temos corpos repartidos em esquerda e
direita. Mãos, pés, olhos, narinas, ouvidos, dedos, hemisférios cerebrais, tudo
tem um outro polo que não é “reserva” ou “duplicata”, mas complemento. Somos
constitucionalmente duplos, e nossa natureza bipolar facilita a
automistificação.
Polarizar é parte de nossa natureza.
Entretanto ela tem sido usada mais para dividir e condenar que para
compreender. Os lados se complementam, mas, na politicagem, o conceito bloqueia
a relativização. Passa a ser prova de certezas, quando o que está em jogo são
circunstâncias e limites.
Polarização é uma palavra mais apropriada para uma enfermidade em que represento a verdade, enquanto você exprime erro e ignorância. Tudo o que digo traduz boa consciência do mundo e das coisas; ao passo que você é a personificação da má-fé. Estamos afundados nessa dualidade não complementar e destrutiva faz tempo.
Lula 3
diz que o regime de Maduro na Venezuela é “desagradável”, mas não hesitou em
equacionar a reação de Israel ao terrorismo do Hamas como
genocídio. Aliás, esse episódio revela nossa infortunada capacidade de somar
selvagerias...
Tudo o que está comigo é verdadeiro e não é
relativizável, mas seu lado é, invariavelmente, falso, hipócrita ou mentiroso.
Hitler e Stálin não exterminaram ninguém; simplesmente foram antipáticos. Como
Fidel ou Ortega.
A má consciência revela um autoritarismo
rigoroso e, no limite, é o berço dos fascismos. O Diabo, que sempre desejou a
morte de Deus e de suas incertezas, é fascista. Para ele, não pode haver outro
lado além do seu. Eu tenho amor; você, ódio. A outra mão deve ser englobada em
todas as situações. O aleijão resultante não é problema. Podemos viver sem um
lado, como manda a lógica da má-fé e dos ficcionalismos modernos.
A má consciência é madrinha dos
particularismos. Ser diferente é ser particular ou singular. Somos exclusivos
em nossas identidades, mas não podemos equacionar peculiaridades com
privilégios, exceto em casos especiais. Quando somos muito ricos, grandes ou
poderosos.
Quando julgamos a esquerda subversiva e a
direita reacionária, não contribuímos para a clareza. Pelo contrário, apagamos
a luz do lado que consideramos inútil, malvado ou demoníaco.
Polarizar não é opor com objetivos de
esclarecer ou enxergar melhor. É, como tristemente testemunhamos, um modo de
esvaziar o outro lado de razão.
No fundo, trata-se de mutilar o debate, o
contraste, a identidade e a compreensão pela eliminação moral ou ideológica do
outro, porque temos a bala de prata do certíssimo, do claríssimo e do
crudelíssimo. Só nós contamos, porque estamos absolutamente certos de que
ultrapassamos a eterna dúvida humana que faz parte de nosso caminhar.
A certeza castra a competição. E a competição
é a base do liberalismo democrático. É ela que testa a riqueza de certos
caminhos e posições. Por causa disso, regimes democráticos têm como sina e
determinação a mudança periódica dos cargos públicos. Todos regulados por
ideais diversos, mas unidos num acordo pela transitoriedade do poder. Uma
transitoriedade fundada em direitos individuais.
Para realizar tal objetivo, regimes
democráticos articulam eleições — competição eleitoral em que se submetem ao
julgamento da população de cidadãos, aqueles que votam e elegem seus candidatos
por um período delimitado. A regra eleitoral é um dos melhores exemplos de
norma universalista, pois vale para todos os candidatos e todos os votantes.
Trata-se de “jogo inclusivo” e, como sabemos, arriscado.
Como um jogo de poder, ele desperta paixões
espúrias e, em países cuja estrutura social se funda em valores aristocráticos
e elitistas, existe permanente tentação de eliminar o opositor. O golpe nasce e
cresce como malfadado projeto, justamente quando a polarização assegura
certezas e armazena os argumentos das balas de prata que salvariam a sociedade.
Trata-se de um pantanal ético de que — valha-me Deus! — ninguém escapa!
Um comentário:
A argumentação é cuidadosa e correta, mas o título parece exagerado, distorcido e, portanto, dele discordo! Há polarizações positivas e necessárias!
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