Efeito fiscal de pente-fino em benefícios é incerto
O Globo
Revisão em pagamentos do INSS e no cadastro
do BPC é positiva. Mas economias projetadas são otimistas
Ao anunciar o detalhamento dos R$ 25,9
bilhões de cortes que pretende implementar no Orçamento de 2025, o governo deu
destaque aos gastos sociais. Do total, a estimativa é que R$ 6,4 bilhões venham
do Benefício de Prestação Continuada (BPC), R$ 10,5 bilhões de benefícios
do INSS (incluindo
o auxílio-doença) e R$ 2,3 bilhões do Bolsa Família.
Só nessas três rubricas, o governo acredita haver R$ 19,2 bilhões em pagamentos
indevidos.
Ao todo, 5,9% dos gastos do governo em 2023 (ou R$ 261,6 bilhões) foram destinados a programas como Bolsa Família e BPC. Numa definição mais elástica de gastos sociais que inclui a Previdência, 16,7% do PIB — ou quase R$ 800 bilhões — tem por finalidade a proteção social.
O governo faz bem em dedicar maior atenção a
essas despesas. Elas têm exercido enorme poder de atração sobre estelionatários
e fraudadores, e não faltam evidências de que existem quadrilhas especializadas
em disputar esse dinheiro com quem de fato precisa de ajuda do Estado. Mas é
incerto que o combate às fraudes terá o efeito fiscal almejado pelo governo.
A primeira fase de um pente-fino em andamento
feito pelo Ministério da Previdência
Social nos auxílios-doença identificou o pagamento indevido a
45 mil segurados do INSS. Havia irregularidades em nada menos que 45% dos
benefícios auditados. O desvio de recursos se deve a quem volta a trabalhar e
não pede a suspensão do auxílio ou obtém emprego e omite a informação de que o
recebe. O objetivo da fiscalização até o fim do ano é averiguar 800 mil
pagamentos. O governo espera que, encerrada a auditoria, haja economia de R$ 3
bilhões.
O caso do pente-fino no BPC, que paga um
salário mínimo a idosos ou a deficientes sem condições financeiras, levanta
dúvidas sobre essas estimativas. O governo tem pedido a quem recebe o benefício
que regularize sua situação no Cadastro Único para Programas Sociais
(CadÚnico), criado para identificar aqueles que precisam de apoio do Estado.
Para quem não atualizar o cadastro, há risco de suspensão do benefício. A
previsão inicial era que a economia com a eliminação de pagamentos indevidos
chegaria a R$ 6 bilhões, mas na semana passara o próprio ministério anunciou
que dificilmente atingirá esse valor, pois a entrada de novos beneficiários tem
compensado a suspensão dos benefícios irregulares.
Isso não significa que o pente-fino seja
desnecessário. Ao contrário. Onde há muito dinheiro público, proliferam
esquemas para tentar desviá-lo. Em 2005, o Ministério Público Federal realizou
um cruzamento dos beneficiários do Bolsa Família com a relação dos funcionários
da Prefeitura de Teresina, capital do Piauí. Havia mais de 1.100 servidores
municipais recebendo indevidamente.
O fato de haver beneficiários de programas sociais fora do CadÚnico já é um sinal de falhas na gestão desses recursos. É espantoso que o cadastro esteja corrompido. O zelo por informações atualizadas sobre os beneficiários e o controle rigoroso deveriam ser a regra em qualquer governo. O pente-fino nos gastos de programas sociais se deve à necessidade de cumprir as metas fiscais. Mas esse pretexto não deveria ser necessário para o governo administrar com austeridade os recursos recolhidos em impostos. O combate a desvios precisa ser constante.
Congresso precisa desfazer manobra para tirar
auxílio-gás do Orçamento
O Globo
Artimanha para driblar arcabouço fiscal não
fará desequilíbrio sumir. Só erodirá credibilidade do governo
O Congresso terá de modificar o Projeto de
Lei (PL) enviado pelo Executivo prevendo mudanças no repasse do auxílio-gás aos
inscritos no Cadastro Único. A meta é ampliar o universo de famílias
beneficiadas dos atuais 5,6 milhões para 20,8 milhões até dezembro de 2025. O
governo não apresentou evidências da necessidade de expandir o programa nessa
extensão, nem para o salto no gasto, que sairá de R$ 3,4 bilhões este ano para
R$ 13,6 bilhões em 2026. Pior: pelo plano, o custo adicional não será
registrado como despesa no Orçamento, para evitar que interfira nas metas
fiscais.
Pela artimanha contábil elaborada no
Executivo, o Tesouro abrirá mão de receitas oriundas da exploração do pré-sal,
e o dinheiro será repassado diretamente à Caixa para operar o programa. A
renúncia de arrecadação em momento de grave crise nas contas públicas é um
subterfúgio para tentar escapar das limitações de gastos criadas pelo próprio
governo. Se o Congresso não agir, a credibilidade do arcabouço fiscal sofrerá
um golpe duro. Não será o primeiro.
Em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva lançou o programa Pé-de-Meia, auxílio mensal de R$ 200 para estudantes de
baixa renda do ensino médio em escolas públicas mediante o cumprimento de
critérios como frequência mínima ou participação em exames de avaliação. A
intenção era gastar R$ 6 bilhões neste ano e R$ 20 bilhões até 2026. Tudo fora
do limite de despesas do arcabouço fiscal. Em maio, o Congresso aprovou a
antecipação de R$ 15,7 bilhões, sem saber se as receitas extraordinárias que
permitiriam a despesa se confirmariam. O Planalto preferiu inserir o valor como
“jabuti” no projeto que recriou o seguro obrigatório de veículos.
A crise fiscal diante do país é alarmante. Em
julho, o resultado primário do setor público (déficit de R$ 21,3 bilhões) ficou
muito aquém do esperado (R$ 6,7 bilhões). Nos 12 meses até julho, o déficit
chega a 2,29% do PIB, ou R$ 257,7 bilhões. Se nada for feito, a dívida pública
seguirá seu ritmo inexorável de alta, pondo em risco a inflação e o
crescimento.
Iniciativas como o novo auxílio-gás ou o
programa Pé-de Meia podem ser defensáveis, mas, quando houver aumento de
despesa, o governo precisa dizer onde fará o corte correspondente para não
agravar o desequilíbrio crônico nas contas públicas. Não é o que tem feito.
Numa dança esquizofrênica, ora jura compromisso com o equilíbrio das contas
públicas, ora tenta burlar as regras. Anúncios de cortes de gastos e operações
de pente-fino são seguidos de lançamentos de programas sociais fora do
Orçamento. Artimanhas não farão o desequilíbrio fiscal sumir. Apenas erodirão a
credibilidade da política fiscal. O Congresso precisa dar sua contribuição,
zelando para que o PL sobre o auxílio-gás não tenha impacto nas contas
públicas.
Governo apresenta orçamento com excesso de
otimismo
Valor Econômico
Sem buscar superávits crescentes, a dívida,
já alta em relação aos emergentes, continuará subindo
O Projeto de Lei Orçamentária de 2025 prevê
déficit zero, e, para sua obtenção, apoia-se em R$ 166,5 bilhões em receitas
extras (R$ 46,7 bilhões dependentes de aprovação do Congresso) e cortes de
gastos de apenas R$ 25,9 bilhões. As despesas primárias crescerão 7,1%, ou R$
159,4 bilhões em relação à melhor estimativa disponível para o comportamento
dos gastos este ano, a do terceiro balanço bimestral de receitas e despesas, de
R$ 2,22 trilhões. Com um avanço previsto da receita líquida de 8,3% em relação
ao exercício deste ano - se realizado -, fica garantida nova expansão de 2,5%
das despesas em 2026, caso o governo obtenha déficit zero ou de -0, 25% do PIB
em 2024.
Será novamente difícil alcançar a meta
prevista. Em primeiro lugar, o governo estimou um avanço do PIB superior ao
deste ano - 2,64% ante 2,59% da terceira revisão bimestral. A pesquisa Focus,
com consultorias e bancos, indica expansão bem menor, de 1,86%. Ou seja, as
receitas líquidas de R$ 2,35 trilhões podem não se realizar. Para um
crescimento duvidoso maior, o PLOA estima inflação menor, de 3,3%, ante
projeção de 3,9% do Focus e de 3,6% do cenário de referência do BC.
O governo espera que as receitas com
dividendos e participações deem um salto de 36% no ano que vem, atingindo R$
33,8 bilhões, ante os R$ 24,2 bilhões previstos para 2024. As receitas com
recursos naturais (exploração de petróleo e minerais) também deverão crescer a
dois dígitos, para R$ 131,6 bilhões, 11,2% mais que os R$ 118,13 bilhões
atuais. Receitas com aumento de impostos ficarão restritas, por enquanto, aos
aumentos da CSLL, válida apenas para 2025, onde os bancos pagarão a maior parte
da conta (sobe de 20% para 22% para eles), e ao Imposto de Renda sobre Juros do
Capital Próprio, aumentado de 15% para 20% de forma permanente.
Todas as esperanças de recursos adicionais
estão por conta de acordos sobre pendengas judiciais. As que decorreram de
desempate desfavorável ao contribuinte com a volta do voto de minerva para o
governo retornou ao orçamento de 2025 mais modesto. A previsão inicial, no ano
passado, era de receitas de R$ 54 bilhões. Na terceira revisão do orçamento do
corrente exercício, caiu a R$ 37,7 bilhões, mas mesmo assim decepcionou - só R$
87 milhões ingressaram nos cofres públicos até julho. Para 2025, estimam-se R$ 28,57
bilhões. A eles se acrescentam as expectativas depositadas nas transações
tributárias, acertos com devedores, de R$ 26,48 bilhões, mais a
recém-instituída transação integral, em que será possível fazer acertos com
grandes empresas, a exemplo do realizado pela Petrobras, da qual se esperam R$
31 bilhões.
Para fechar as contas, calcula-se o ingresso
de R$ 15,4 bilhões de recebimento de créditos de dívida ativa, e de R$ 20
bilhões decorrentes da Dirb, nova declaração em que as empresas têm de indicar
de quais benefícios tributários gozam, dispêndio no qual haveria supostas
incorreções.
As duas principais despesas do orçamento
cresceram acima da inflação e da projeção de receitas. O déficit da previdência
deverá chegar a R$ 293,1 bilhões, com avanço de 9,1%. As despesas de pessoal
pularam para R$ 416,2 bilhões, 11% a mais que na terceira revisão, como fruto
dos acordos gerais para aumento de salários do funcionalismo público. Já os
gastos para complementação do Fundeb e da educação aumentaram para R$ 56,5
bilhões, ante R$ 47,8 bilhões estimados para 2024.
O governo evitou fazer superávits robustos e
por isso o endividamento voltou a crescer mais rapidamente, dada a bola de neve
dos juros. Segundo dados do Banco Central, divulgados no dia em que o PLOA 25
foi enviado ao Congresso, o governo geral (inclui estatais, Estados e
municípios) teve em julho o pior resultado desde outubro de 2021, com déficit
de R$ 21,3 bilhões. A surpresa dos números coube aos rombo dos Estados e
municípios, que cresceram bastante para R$ 11 bilhões no mês.
No ano, o governo central acumula déficit de
R$ 79,3 bilhões, enquanto que a meta de déficit é de R$ 28,8 bilhões. Mas o
déficit nominal, que inclui as despesas financeiras, está explodindo. Em um
ano, foram 5,8 pontos percentuais do PIB de expansão da dívida bruta do governo
geral (de 72,7% para 78,5%), e a dívida líquida, que desconta os ativos
públicos, saltou de 58,5% do PIB para 61,9% do PIB. Como não há superávit
primário, a conta dos juros só aumenta, e, como eles estão muito altos, o
efeito é exorbitante. Em 12 meses, gastaram-se com eles R$ 869,7 bilhões. O
déficit nominal, que os inclui, ultrapassou 10%.
A desconfiança de que o governo será incapaz
de produzir até mesmo resultados positivos muito modestos empurra os gastos
financeiros para cima. Os juros podem subir em breve, se a inflação continuar
desancorada e não cair, em parte devido aos estímulos fiscais que o governo não
deveria estar concedendo.
O peso dos gastos financeiros fica claro no orçamento total. Todas as despesas do Estado central somam R$ 2,935 trilhões, enquanto as financeiras consomem R$ 2,77 trilhões. Sem buscar superávits crescentes, a dívida, já alta em relação aos emergentes, continuará subindo. Para o ano que vem, na estimativa otimista de que a Selic média não ultrapassará 9,6%, serão mais R$ 755 bilhões de encargos financeiros, 6,1% do PIB.
Inquéritos sigilosos são a origem do
desequilíbrio
Folha de S. Paulo
Em boa hora o STF acena para a conclusão de
ações em que o juiz acumula funções e investigados têm direitos restringidos
A estrepitosa decisão do ministro Alexandre de
Moraes de suspender o
acesso ao aplicativo X no Brasil, se for avaliada em si mesma,
merece reparos pela desproporcionalidade de algumas medidas, embora a
insistência da empresa em descumprir ordens judiciais não pudesse passar sem
sanção.
O dono da plataforma, Elon Musk,
deliberadamente empurrou o magistrado do Supremo Tribunal Federal para essa
situação não porque o empresário seja paladino das liberdades. Musk é um
conhecido aliado da ditadura chinesa
em nome da proteção das operações da sua montadora, a Tesla,
no país asiático.
Apontar a farsa sustentada por Musk, no
entanto, não serve
para justificar todas as medidas tomadas por Moraes. Há aspectos
abusivos no rol das deliberações, como o de sequestrar contas de uma empresa
não implicada na desobediência, a provedora Starlink, somente porque Musk é um
de seus acionistas.
Felizmente o próprio ministro recuou de outra
arbitrariedade, a de banir a
oferta de aplicativos VPN, que protegem redes privadas de acessos
não autorizados. Seria também punir firmas e pessoas sem ligação com a
desobediência do X apenas porque o VPN pode ser usado para acessar furtivamente
a rede social.
Para que os pontos frágeis da decisão de
Moraes possam ser criticados e corrigidos, seria urgente que os 11 integrantes
do Supremo deliberassem sobre ela. O ministro relator preferiu, no entanto,
submetê-la nesta segunda-feira (2) ao crivo da Primeira Turma, onde atuam cinco
ministros.
O incidente sobre o X, vale ressaltar, é
apenas sintoma do desequilíbrio original que foi a corte se autoconceder
poderes extraordinários, mal delimitados e incompatíveis entre si, a título de
combater ameaças de extremistas contra o tribunal. A anomalia dos inquéritos
especiais completou cinco anos.
Por meio desse mecanismo esdrúxulo, cidadãos
diversos têm sido atingidos em seus direitos de se expressar, pelas decisões
que derrubam contas em plataformas digitais, e de ir e vir, com a anulação de
passaportes.
As medidas de força ocorrem em surdina, pois
as ordens monocráticas são secretas, e as pessoas atingidas não têm acesso a
elas para exercer o seu direito de defesa. Até hoje ninguém além de Moraes sabe
exatamente quantos cidadãos foram alvejados nem as alegações de cada ação
restritiva.
Em boa hora o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em entrevista a esta Folha, acena com a conclusão do inquérito das fake news, a partir da avaliação do procurador-geral da República, que poderá fazer denúncias baseadas no material ou solicitar o arquivamento das apurações.
O exemplo brasileiro ressalta a sapiência dos
idealizadores do moderno Estado democrático de Direito. Entregar a alguém,
mesmo que bem intencionado, poderes de mais e controles de menos é dar margem a
abusos.
O Brics de Pequim e Moscou
Folha de S. Paulo
Com voz abafada, Lula expõe-se ao embaraço de
ver Venezuela e Nicarágua no bloco, que se vale de antiamericanismo datado
Sob os dois primeiros mandatos de Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT),
o Brasil jamais ponderou se seu engajamento no Brics convinha
aos interesses nacionais. O bloco de economias emergentes, com viés
antiamericano datado, encaixou-se em sua ambição de conduzir uma diplomacia
"ativa e altiva", com olhos postos no chamado Sul Global.
O grupo, formado em
2006 por Brasil, Rússia, Índia e China, recebeu a África do Sul em
2011.
Neste terceiro mandato, o governo brasileiro
não teve forças para impedir a expansão dos Brics ditada por China e Rússia,
que trouxeram Irã,
Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Egito para o bloco em janeiro deste ano.
Não bastasse, vê-se agora diante do
constrangimento de aceitar a possível inclusão da Venezuela e
da Nicarágua no
órgão.
Como reportou a Folha, Pequim e Moscou
preparam a integração
de ambas as ditaduras latino-americanas como parceiras em
outubro, na reunião de cúpula da entidade em Kazan (Rússia).
Embora Venezuela e Nicarágua não estejam na
lista de adesão plena, a medida será suficiente para criar embaraços ao governo
Lula. Há algo de proposital nesse avanço, que leva em conta a voz diminuta do
Brasil no bloco.
Não passa incólume às diplomacias de Xi Jinping e
de Vladimir
Putin a crise na relação do Brasil com a ditadura de Daniel Ortega.
Tampouco é ignorada a decisão de Lula, reforçada na sexta (30), de reconhecer a
vitória eleitoral de Nicolás
Maduro somente se comprovada pelas atas do pleito.
É bem possível que o Itamaraty consiga
convencer a Índia a somar-se ao veto brasileiro a essa iniciativa. A própria
China pode recuar diante dos sinais emitidos por Lula de adesão do Brasil à
Nova Rota da Seda —outra decisão controversa, sob o ponto de vista do interesse
nacional.
O Itamaraty considera barganhar a inclusão de
países sem viés antiamericano, como alguns do Sudeste Asiático, pela exclusão
de Venezuela e Nicarágua. Ilude-se também com a adesão da Colômbia, que nunca
pleiteou acesso, como prêmio de consolação.
Não deixa de causar mal-estar a Lula sua
tardia constatação da essência ditatorial dos regimes de Maduro e Ortega,
louvados por seu partido. Embora bem-vindo, esse giro não seria possível sem a
pressão de forças democráticas consolidadas no país.
Mas ainda falta ao petista reconhecer que o Brics não passa de uma concertação regida conforme os estratagemas da China e, a rigor, de um infeliz acrônimo no qual o Brasil se meteu por pura conveniência ideológica e boa dose de ingenuidade geopolítica.
Constituição chamuscada
O Estado de S. Paulo
Não cabe ao ministro Dino dizer como nem
quando o governo federal deve agir para debelar o fogo na Amazônia e no
Pantanal, muito menos de onde deve vir o dinheiro para isso
O Supremo Tribunal Federal (STF) adquiriu um
protagonismo inaudito na vida nacional nos últimos anos – especificamente nesse
período que cobre o trevoso mandato de Jair Bolsonaro e a conturbada transição
para o governo de Lula da Silva – como um dos mais rígidos anteparos às ameaças
ao Estado Democrático de Direito no País. Não foram triviais os desafios do STF
em meio ao maior teste de estresse da democracia brasileira desde a promulgação
da Constituição de 1988.
Paradoxalmente, porém, esse mesmo STF se
mostra cada vez mais à vontade para exorbitar os limites que lhe foram
determinados pelos constituintes originários, o que configura uma clara afronta
ao próprio Estado Democrático de Direito pelo qual a Corte diz zelar. Sempre
movidos por boas intenções, aquelas das quais o inferno está cheio, alguns
ministros da Corte têm extrapolado seus papéis institucionais para se
imiscuírem em questões que nem remotamente lhes dizem respeito.
Até o calouro ministro Flávio Dino entendeu
rapidamente como a banda passou a tocar naquele canto da Praça dos Três
Poderes. No dia 27 passado, Dino ordenou que, em 15 dias, o governo federal
mobilizasse as Forças Armadas e agentes da Polícia Federal, da Polícia
Rodoviária Federal, da Força Nacional e dos órgãos de fiscalização ambiental
para acabar com o fogo na Amazônia e no Pantanal, inclusive agindo “de forma
repressiva e preventiva” em ambos os biomas.
Consta que a decisão teria estarrecido o
Palácio do Planalto. É provável. Afinal, até outro dia Flávio Dino era um dos
mais loquazes membros do primeiro escalão do governo Lula. Contudo, a ordem de
Dino é, sim, de estarrecer, mas por outra razão: não compete a um magistrado
dizer como nem quando os Poderes Executivo ou Legislativo devem formular e
implementar políticas públicas. Aos ministros do STF cabe apenas afirmar se a
Constituição está sendo cumprida ou não nos casos que lhes chegam para
apreciação. Mas essa anômala competência universal do STF, que se espraiou por
instâncias inferiores do Poder Judiciário, virou moda no País.
Não há dúvida de que a propagação do fogo na
Amazônia e no Pantanal impõe ações imediatas do governo federal, em conjunto
com os entes subnacionais. É dever do presidente Lula da Silva mobilizar seu
Ministério para equipar as forças federais de segurança e os órgãos de defesa
ambiental, em especial o Ibama, tanto para resolver o problema instalado como
para evitar que queimadas ocorram na dimensão em que têm ocorrido. Mais do que
o custo reputacional para o Brasil, há vidas em perigo nessas regiões e além, pois,
como se sabe, a devastação daqueles biomas produz efeitos nocivos sobre áreas
muitíssimo distantes de seus limites territoriais.
Mas não será ao arrepio da Constituição, por
mais crítica que seja a situação ou mais bem-intencionado que esteja Dino, que
o problema será resolvido. À guisa de dar uma justificativa pomposa para a
usurpação de competências pelo STF, Dino afirmou que “estamos diante do que a
dogmática vem denominando de ‘processo estrutural’, cuja solução demanda
diálogo constante e interinstitucional”. Por “diálogo” leia-se a convocação de
mais uma audiência de conciliação mediada pela Corte Constitucional, marcada para
o próximo dia 10 – um disparate por si só. Deveria ser ocioso lembrar que à
mais alta instância do Poder Judiciário não cabe conciliar coisa alguma.
Conciliações são próprias da política, vale dizer, estão a cargo do governo e
do Congresso.
Talvez ainda numa espécie de umbral desde sua
saída do governo, Dino ainda teve a ousadia de determinar que os ministros da
Defesa, da Justiça e do Meio Ambiente instruam a “abertura de créditos
extraordinários para fazer face ao custeio das ações emergenciais” que ele
mesmo determinara que o governo federal adotasse. Ou seja, não satisfeito em
dizer o que o governo eleito tem de fazer para conter os incêndios, Dino ainda
achou que era o caso de orientar de onde hão de vir os recursos financeiros
para bancar tais ações.
Cedo ou tarde, o fogo será debelado. Mas,
seguindo nessa toada, é o STF quem manterá a Constituição um tanto chamuscada.
A varinha mágica de Lula
O Estado de S. Paulo
Ao anunciar que vai incluir o botijão de gás
na cesta básica de alimentos, Lula da Silva coroa um pacote mal-ajambrado, com
propósitos eleitoreiros e sem sustentação fiscal
O presidente Lula da Silva anunciou numa
entrevista a uma rádio paraibana que já tomou a decisão de incluir o botijão de
gás na cesta básica até 2026, ano de eleição presidencial. Ou seja, quer
colocar o GLP numa lista formada exclusivamente por alimentos essenciais. Para
ele, trata-se de uma medida para coroar as mudanças no Auxílio Gás, que será
ampliado para virar o programa “Gás Para Todos” e quadruplicar os beneficiários
até 2026, obviamente driblando o Orçamento.
Não ficou claro como Lula conseguirá realizar
a tal promessa, mas isso não costuma ser um problema para um presidente que
confunde sua caneta com uma varinha de condão, capaz de resolver qualquer
impasse com uma simples assinatura voluntarista. Foi assim que, sem sequer
consultar o setor de petróleo, Lula baixou um decreto há poucos dias dando
poderes à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP)
para determinar a redução da proporção de reinjeção e queima de gás nos poços
produtores de petróleo, na presunção de que a medida barateará o gás.
“O gás é barato, a Petrobras não tem o
direito de queimar gás”, afirmou Lula, na mesma entrevista em que falou do
botijão. Desde que tomou posse, o presidente vive a dizer que considera um
desperdício a queima e a reinjeção de gás, indiferente aos argumentos de que
não há infraestrutura de transporte suficiente para a oferta de todo esse gás
para o consumo e que a reinjeção é uma técnica mundialmente utilizada para
aumentar o aproveitamento da produção de petróleo.
A mais recente canetada mágica de Lula criou
a primeira saia-justa para Magda Chambriard, sua atual preposta na presidência
da Petrobras. Magda informou que não há como viabilizar a mudança pretendida
pelo chefe nos poços em produção ou que já têm plataformas encomendadas (14
estão a caminho), situação que ela considerou “lastimável”. Segundo a
executiva, a impossibilidade técnica é responsabilidade do “governo passado” –
isto é, de Jair Bolsonaro. Magda deve saber perfeitamente que as
especificidades técnicas dos equipamentos operacionais da empresa não são
definidas por governos, mas, ao apontar o dedo para Bolsonaro, mostra que já
pegou o jeitão da coisa.
Além disso, como bem lembrou a economista
Elena Landau recentemente em sua coluna no Estadão, o governo trata a
Petrobras como monopolista, ignorando multinacionais do petróleo que atuam há
anos no País e que confiaram na segurança dos contratos de concessão assinados
com a ANP. Ademais, como o decreto presidencial afeta toda a exploração de petróleo,
que no Brasil ocorre com o gás natural associado, a emergente indústria
nacional privada também é atingida.
A construção de uma rede de gasodutos que
permita o escoamento do gás que é encontrado associado ao petróleo produzido no
mar, especialmente na região do pré-sal, como pretende Lula da Silva, é um
investimento pesado. Somente o gasoduto Rota 3, em planejamento desde 2014 como
a terceira linha de dutos para transportar o produto da Bacia de Santos ao
continente, é estimado em mais de US$ 2 bilhões e reduzirá a necessidade de
reinjeção de gás em apenas 10%.
O governo lulopetista decidiu que a devolução
de gás aos poços terá de ser drasticamente reduzida para elevar a oferta de gás
no mercado consumidor, mas não disse quem financiará a infraestrutura
necessária para isso. Como disse Landau, “tem cheiro do Brasduto no ar”. Também
decidiu que vai quadruplicar o gasto com o Auxílio Gás dos atuais R$ 3,4
bilhões para R$ 13,6 bilhões até 2026, sem esclarecer de que forma as receitas
e despesas do programa serão contabilizadas no Orçamento.
A criatividade contábil do lulopetismo é
proverbial. Não será surpresa se as empresas de petróleo repassarem diretamente
à Caixa, e não ao Fundo Social do Pré-Sal, as contribuições que vão bancar o
programa. Esses tributos pagos pela produção de petróleo são verbas que
deveriam entrar no Orçamento, mas, no caso, podem pegar um atalho, contornando
o arcabouço fiscal, para cair direto na conta populista de Lula da Silva.
Futuro roubado
O Estado de S. Paulo
Falta de creches no País nega a milhares de
crianças brasileiras um futuro sem pobreza
Como defende James Heckman, Prêmio Nobel de
Economia, “investir em educação na primeira infância é uma estratégia de baixo
custo para promover o crescimento econômico”. Pois o Brasil segue falhando
estrepitosamente nessa área e perpetuando a pobreza intergeracional. O
levantamento Retrato da Educação Infantil no Brasil, divulgado pelo
Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação (Gaepe), que
articula diálogo entre as esferas pública e civil, traz dados assustadores
sobre o descaso com a primeira infância no País, o período de 0 a 6 anos.
De acordo com a publicação, 632.763 crianças
entre 0 e 3 anos encontram-se em fila de espera por uma vaga em creche. A fila
é maior no Estado de São Paulo, onde quase 89 mil crianças aguardam vaga, mas o
problema é nacional. Já em relação à pré-escola (4 a 5 anos), 78.237 crianças
estão fora delas, 50% por falta de vagas. O Maranhão lidera nesse quesito
(8.717 crianças fora da pré-escola), enquanto apenas o Distrito Federal não tem
registro de fila.
O acesso a creches e escolas, como bem lembra
o levantamento, é um direito constitucional. Quase metade dos municípios
brasileiros (44%), porém, tem fila de espera por vaga em creches e na ampla
maioria dos casos (88%) isso se deve à falta de vagas.
No Brasil, a educação básica é atribuição dos
municípios. Apesar disso, em plena campanha eleitoral para definição de novos
prefeitos, muitos candidatos perdem tempo significativo tratando de temas que
não competem aos municípios, como a tirania chavista da Venezuela, o que
demonstra que a prioridade talvez não seja a de melhorar a vida dos munícipes.
Na apresentação do levantamento, o Ministério
da Educação (MEC) reconheceu que, embora a educação básica seja de competência
prioritária dos municípios, “os desafios precisam ser enfrentados de forma
colaborativa, com a atuação conjunta de União, Estados e municípios”.
Ocorre que a solução do governo federal para
a falta de vagas é o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que
despejou vultosos recursos públicos em projetos, sobretudo de infraestrutura,
sem que até agora se conheçam resultados satisfatórios.
Investir na primeira infância, além de
fundamental para o desenvolvimento de habilidades cognitivas no período da vida
em que a maioria das conexões neurais se forma, é mais barato que destinar
recursos à formação tardia de jovens ou pagar pensão àqueles que, por falta de
acesso à educação, não conseguiram se inserir no mercado de trabalho.
Justamente por serem determinantes para que
nossas crianças possam se tornar adultos com um futuro, os investimentos na
educação infantil devem ser extremamente bem desenhados, o que não é exatamente
o histórico do PAC.
Já em relação aos prefeitos, a julgar pela
atual campanha eleitoral, a preocupação com temas que realmente competem aos
municípios parece secundária. Não à toa, gestão após gestão, a falta de vagas
segue imperando, acarretando em uma série de problemas na formação e na
produtividade dos brasileiros.
Mobilidade urbana e qualidade de vida
Correio Braziliense
A mobilidade urbana é parte fundamental da
elaboração de planos governamentais e deve ser encarada em todos os níveis de
administração
A mobilidade urbana ocupa, cada vez mais,
lugar significativo no cotidiano das pessoas, sendo um aspecto determinante
para a qualidade de vida. Nesse cenário, ela se impõe como um desafio no mundo
e no Brasil, que vem experimentando uma rápida expansão dos municípios.
Definida como as condições que viabilizam a circulação dos cidadãos, das
mercadorias e das cargas nas cidades, é um indicador de bem-estar social e
também de desenvolvimento econômico.
Diante disso, a mobilidade urbana é parte
fundamental da elaboração de planos governamentais e deve ser encarada em todos
os níveis de administração. A garantia da infraestrutura necessária para o
deslocamento e a criação de normas de conduta são ações que devem ser pensadas
de forma abrangente e conjunta pelos atores do processo.
A dinamização dos espaços compartilhados e o
acesso aos serviços dependem da mobilidade urbana. A impossibilidade desse
alcance por parte de qualquer parcela das populações - independentemente de sua
abrangência em relação ao todo - é uma desigualdade a ser combatida.
O mau planejamento causa diversos empecilhos
para o dia a dia, como a lentidão no trânsito, os congestionamentos e os
atrasos em compromissos. Uma circulação confusa e difícil ainda pesa no
agravamento dos níveis de estresse dos moradores, além de elevar as poluições
sonora e atmosférica.
No país, a questão da mobilidade urbana se
apresenta desde o começo do incremento do fluxo migratório em direção às
cidades, a partir da segunda metade do século XX. Com o passar dos anos,
soluções foram aplicadas para dar conta da demanda. Porém, novas situações da
atualidade exigem atenção, como a ampliação do número de veículos particulares
nas vias. Ao mesmo tempo, as dificuldades que os grandes municípios brasileiros
têm para investir em alternativas coletivas precisam ser encaradas.
Sistemas de transporte público com cobertura
extensa e eficiente são o único caminho possível para resolver os problemas da
mobilidade urbana no Brasil na atualidade. Estudos e debates são realizados,
mas as propostas viáveis precisam sair dos fóruns e ir para a prática. O
gargalo diário interfere negativamente, de diversas formas, nas tarefas das
pessoas.
É essencial, também, que os agentes pensem
uma mobilidade urbana sustentável, totalmente aliada à preservação do meio
ambiente. A acessibilidade dos lugares, respeitando necessidades específicas,
deve ser contemplada.
A diversificação dos modais oferecidos
(metrôs, ônibus, bicicletas, carros e outros) e a integração entre eles são um
passo essencial. Em algumas conjunturas, a flexibilização dos horários das
atividades e serviços urbanos pode contribuir. A adoção de melhorias nas vias,
conferindo maior fluidez, é outro ponto.
Assegurar a mobilidade urbana e tornar as
metrópoles mais acessíveis àqueles que a habitam, proporcionando uma melhor
qualidade de vida à população, é uma rota que o país ainda está percorrendo.
Mas é indispensável acelerar o processo para que as medidas superem os
obstáculos o mais rápido possível.
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