sexta-feira, 8 de novembro de 2024

José de Souza Martins - Bruxas de importação

Valor Econômico

O Halloween tornou-se aqui um artifício para saciar da carência de doçura esta sociedade de insuficiências e insatisfações

Já faz alguns anos que, na véspera do Dia de Todos os Santos, a criançada das redondezas de onde moro, no subúrbio de São Paulo, logo depois de escurecer, em grupos, muito sorridente e alegre, bate à porta de casa e quando atendemos somos saudados com o que parece ser mais uma ameaça do que uma brincadeira: “Gostosuras ou diabruras?”.

A alegria infantil das atitudes contrasta com a sisudez da frase estrangeira, originária de uma cultura religiosa repressiva dos tempos puritanos da caça às bruxas nos EUA.

No começo, aqui em casa, resistimos em aderir e participar. Não víamos nenhuma relação com nossa sociedade e nossos costumes. Aquilo era estranho e postiço.

Para minha mulher e eu, não tinha sentido. Amigos nos sugeriram que havia aqui um equivalente das bruxas americanas, o saci-pererê. Na verdade o saci é outra coisa. Não é bruxa. Nem feiticeiro. É um “trickster”, um ser ambíguo. Para muitos é o nosso malandro simbólico. Situa-se no limite dos lados, desrespeita regras, encarapita-se nos mourões das porteiras. Separa e une. De certo modo, é um poder.

Um jovem indígena de uma aldeia do sul da cidade de São Paulo explicou-me que, ao contrário da impressão geral, o saci não é negro, é de origem indígena. Suas características físicas, menino de uma perna só, o sugerem. Como o curupira, que tem os pés invertidos em relação à direção do caminhar. No século XVIII, com o incremento do tráfico negreiro, tornou-se negro, com as características que tem hoje na cultura popular. Assumiu a identidade do outro.

Procuramos entender o que significava aquela novidade, de bruxas americanas a falar português e expressar concepções de um imaginário estrangeiro. No mundo inteiro, países coloniais e países atrasados como o nosso sofreram invasão cultural como técnica de sujeição cultural dos nativos.

Foi interessante e foi uma descoberta. Vinham em bandos sucessivos, e as visitas se prolongavam até antes da meia-noite. Os primeiros grupos eram de crianças pequenas, sempre acompanhadas por alguns adolescentes, claramente para protegê-las. Eram crianças, não eram malandros. Os mais velhos vinham mais tarde. E os malandros vinham na véspera.

Aprendemos a comprar balas e doces com antecipação e a preparar pacotinhos de “doçuras”. Chegamos a distribuir, todos os anos, quase cem pacotes de balas de vários tipos. Nunca falta o “muito obrigado” de todos e de cada um, sempre seguido de um “Deus os abençoe”. São crianças que vêm dos bairros pobres e da favela das proximidades. É um jeito de adoçar a vida para elas amarga.

De bruxa, nem notícia. Reinventam a prática esdrúxula, resistem ao que não tem sentido. O Halloween tornou-se aqui um artifício para saciar da carência de doçura esta sociedade de insuficiências e insatisfações, que precisa imitar o que não é para chupar uma bala.

A difusão dessas práticas não é coisa apenas de pobres. A classe média, no mundo inteiro destituída de autenticidade, aqui é fascinada pela ideia de imitar e copiar, pela ideia de ser coadjuvante de quem aparece no cinema.

Os ricos são, no Brasil, grandes importadores de costumes estrangeiros, que por meio deles se disseminam. Foi o caso do Papai Noel, nas décadas finais do século XIX, trazido pelos fazendeiros de café, do Sudeste, que após a colheita iam para a Europa desfrutar os créditos obtidos com a comercialização da safra.

Nosso Natal era apenas, e assim fora durante todo o período colonial, o marco da passagem de ano. A partir do Dia de Natal, o calendário civil mudava. O dia 24 de dezembro de 1553 foi o último do ano, e o dia 25 de dezembro do mesmo 1553 já vinha numerado nos documentos oficiais como 1554.

O dia festivo para as crianças era o dos Santos Reis, 6 de janeiro, que comemora as dádivas dos Santos Reis para o menino da manjedoura. É o dia do desmontar o presépio doméstico.

Apesar da poderosa concorrência da mentalidade mercantil difundida pelo comércio natalino, a celebração dos Santos Reis ainda resiste. Mesmo nas cidades, não só as do interior.

As Folias de Reis ressurgiram nas cidades, nos bairros de migrantes oriundos da roça. Ainda fazem a visita ritual em alguns bairros. Os migrantes são os grandes preservadores da religiosidade popular na região metropolitana de São Paulo, justamente a região que foi por longo tempo uma região industrial.

Foi aí pelos anos 1990 que numa noite de janeiro ouvimos um cântico vindo do portão de casa. Acompanhado por acordes de viola caipira, um grupo precatório de foliões dos Santos Reis entoava o “Deus Te Salve Casa Santa”. Procedia de um bairro pobre vizinho para surpresa dos moradores de minha rua. Nasceu daí meu livro “O coração da Pauliceia ainda bate”.

 

Um comentário:

Mais um amador disse...

Muito bom texto.

A leitura fez-me lembrar de uma frase acho, acho, que do Arrigo Barnabé: aquilo que não muda ao longo do tempo é folclore.

😏😏😏