Valor Econômico
Uma conversa com Pascal Lamy em meio à
retaliação de Donald Trump contra a Colombia
Cedo da manhã nesta segunda-feira, converso
ao telefone com Pascal Lamy, ex-diretor geral da Organização Mundial do
Comércio (2005-2013) e ex-comissário de comércio da União Europeia (1999-
2004), em meio à demonstração de força de Donald Trump contra a Colômbia, que
agita a América Latina.
A opinião de Lamy tem peso na cena
internacional. É um arguto analista da situação global, respeitado, consultado
e ouvido por autoridades do mundo inteiro, e com frequência agora ainda maior
diante do estado de calamidade atual.
De entrada, ele observa sorrindo que não ficaremos entediados com Trump de volta à Casa Branca. Pessoalmente, não ficou nada surpreso com a retaliação contra a Colômbia, incluindo tarifas de 25% sobre seus produtos na primeira semana e 50% a partir da segunda, depois que Bogotá recusou o pouso de dois voos com imigrantes deportados dos EUA – situação revertida um dia depois por um suposto "acordo" entre os dois países.
"Trump sempre disse que adorava as
tarifas, para ele é como um canivete suíço na economia moderna. Acha que com
tarifas pode fazer tudo. Ele diz que todo mundo está faminto para exportar para
os EUA e vai se servir disso para obter o que quer (dos outros países)",
disse Lamy.
Pascal Lamy, ex-diretor-geral da OMC: — Foto:
Denis Balibouse/Reuters
Com a Colômbia, comenta Lamy, Trump encontrou
a ocasião formidável de fazer um exemplo. Como numa classe na escola ou como em
prisão, dá uma grande bofetada para que os outros o deixem tranquilo.
"É o uso da força para fazer reinar a
disciplina que quer impor [na cena global]", diz ele. Aparentemente,
Washington montou em detalhes a deflagração da crise, já que os colombianos
aceitavam receber os deportados, pedindo respeito à dignidade humana e
deportação não em avião militar ou algemados.
"Trump saltou sobre a ocasião, contra os
pequenos colombianos, para mostrar ao mundo inteiro seus músculos." Ou
seja, a arma não é mais canhão, é tarifa. Usa a tarifa como canhão na
diplomacia.
Para Lamy, o que acontecerá nesse cenário,
com a Europa, por exemplo, será uma mistura de negociação e de represálias. Há
certo espaço de negociação, mas difícil a equilibrar, porque Trump considera
que os outros é que devem fazer as concessões. Algumas economias tem espaço
para retaliar, como a própria UE, mas não é o caso de boa parte dos países,
incluindo a Colombia.
Para Lamy, não há nada de inacreditável no
que está acontecendo, e sua análise vai bem além.
Ele cita um artigo publicado na revista
"Le Grand Continent", de Paris, escrito pelo reputado professor de
filosofia contemporânea Jianwei Xun, de Hong Kong, com o autor cunhando uma
nova noção: “hipnocracia”, ou império da fantasia -- como as narrativas moldam
nossas percepções e controlam nossa realidade.
A partir da semana passada, com a posse de
Trump "podemos dizer que a história está se repetindo três vezes: a
primeira vez na forma de uma tragédia, a segunda vez na forma de uma farsa e a
terceira vez na forma de um transe". A pergunta é: Donald Trump e Elon
Musk estão hipnotizando o mundo?
A noção de hipnocracia -- o poder e a
dominação das fantasias -- é usada para descrever esse sistema no qual o poder
opera diretamente, ou seja, algoritmicamente, na consciência, criando estados
alterados permanentes por meio da manipulação digital da atenção e da
percepção.
Nota que, embora a maioria dos analistas
ainda se concentre em fenômenos como "fake news" ou
"pós-verdade", em Washington estamos testemunhando uma transformação
muito mais profunda: "o surgimento de um sistema em que o controle é
exercido não pela repressão da verdade, mas pela multiplicação de narrativas a
ponto de tornar impossível qualquer ponto fixo".
Para Xun, "isso não é simplesmente um
nacionalismo extremo, mas uma demonstração do poder hipnocrático de alterar a
realidade por meio da enunciação pura e simples. O próprio território físico
torna-se moldável pelo simples ato de nomear".
Considera que o modelo é o seguinte: Trump
induz a uma tensão profunda, enquanto mantém a perspectiva de uma liberação que
mantém o público em um estado de excitação controlada.
"Trump não retornou simplesmente à
presidência: ele inaugurou formalmente um novo regime de realidade. Bem-vindo
ao reinado da hipnocracia", conclui o artigo.
De meu lado, menciono a Pascal Lamy um artigo
do professor Gilles Gressani, de Sciences Po, que ele conhece, publicado na
semana passada no jornal "Le Monde" e que já mencionei em coluna na
semana passada.
Para Gressani, depois da "globalização
feliz" podemos estar testemunhando uma especie de "vassalagem
feliz". Isso envolve "um acordo particularmente perturbador, tão
assimétrico, transacional e unilateral parece ser a troca: obediência e recusa
de qualquer autonomia, em troca de uma forma de proteção contra a agressão
imperial".
Nesse novo regime, a inovação tecnológica e a
extrema concentração de riqueza são combinadas com uma soberania expansiva e
militarizada e uma política agressiva de proteção da identidade, escreveu ele.
"Em meio à vertigem das transformações radicais que deveríamos estar
acompanhando, esse alinhamento promete uma forma de estabilidade para sistemas
políticos sem direção, ao custo de uma vítima colateral: nossa soberania."
Volto à conversa com Pascal Lamy e falamos
sobre a OMC totalmente atropelada por Trump.
Para Lamy, a entidade global precisa aprender
a viver sem os americanos e fazer uma coalizão suficientemente forte de países
para exercer seu direito de retorsão, mas entre eles não ceder à tentação de
protecionismo para não causar efeito dominó. Lembra que os EUA representam 15%
das importações mundiais. Ou seja, 85% são feitas corretamente, pelas regras
comuns da OMC. Ou seja, não se deixar cair na psicoce de guerra tarifária.
Na semana passada, no Fórum Econômico Mundial
em Davos, uma resignada diretora-geral da OMC, Ngozi Iweala-Okonjo, sugeriu a
líderes mundiais, funcionários do governo e empresários a "relaxar" e
"respirar fundo" em meio às crescentes incertezas da política
comercial.
"É fácil usar tarifas, é atraente como
ferramenta política, mas espero que tenhamos uma análise sólida do que isso
significa", disse ela. Sobre as ameaças de altas de tarifas pelos EUA,
Ngozi alertou contra uma espiral de retaliação que poderia afetar a economia
global, como observado na década de 1930, quando o aumento das tarifas piorou a
crise econômica.
"Se houver uma retaliação do tipo olho
por olho e chegarmos ao ponto em que estávamos na década de 1930, veremos
perdas de dois dígitos no PIB global. Isso é catastrófico. Todos pagarão, e os
países pobres pagarão ainda mais", alertou ela, mais uma vez, incerta se
um dia será ouvida em Washington.
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