terça-feira, 28 de janeiro de 2025

No principio era a máquina - João Pereira Coutinho

Folha de S. Paulo

Com a inteligência artificial, o conhecimento e a ignorância aumentam

Casos de longevidade são casos de curiosidade. Falo do que conheço. Gente com 80, 90, cem anos? Não foi apenas a dieta, o jogging ou a medicina que prolongaram a vida. Foi a curiosidade: a ambição constante de saberem um pouco mais do que sabiam no dia anterior. Se isso é válido para os meus conhecidos, é válido para Henry Kissinger, morto aos cem, que continuou pensando, escrevendo e publicando até o fim. Um tema, em particular, ocupou os neurônios do cavalheiro na fase crepuscular: a inteligência artificial.

Nas palavras do seu biógrafo, o historiador Niall Ferguson, faz sentido: se o poder destrutivo das armas nucleares ocupou grande parte da sua vida, era inevitável que os desafios da inteligência artificial também aparecessem no radar. O resultado dessa curiosidade pode ser lido no seu último livro, "Genesis", que escreveu em coautoria com Craig Mundie e Eric Schmidt.

É a existência humana que está em causa, argumentam eles. Não apenas no sentido mais básico da expressão. Há dimensões dessa existência que podem mudar de forma mais sutil. A história da humanidade é a história do seu desenvolvimento tecnológico, de como a espécie saiu da caverna, inventou a agricultura, criou cidades, melhorou os transportes, combateu doenças, pisou a Lua.

Mas, em todas essas etapas, o conhecimento andou de mãos dadas com o entendimento. Os humanos eram, ao mesmo tempo, criadores e beneficiários de uma tecnologia que dominavam.

Não com a inteligência artificial. Nosso conhecimento, em todas as áreas, será aumentado exponencialmente. Mas isso se dará por processos que não entendemos. Teremos informação sem explicação.

Como argumentam os autores, viveremos um futuro que será muito semelhante a um tempo pré-científico e pré-moderno, em que os seres humanos aceitavam uma autoridade inexplicável. Qual o problema? Ninguém falou em problema. Repito: os avanços serão exponenciais. Mas quem pensa que a perda de estatuto intelectual dos humanos face às máquinas é um mero detalhe está enganado.

Tradicionalmente, só Deus estava acima dos humanos. Mas, aqui na Terra, os humanos estavam acima de todas as restantes espécies. Essa hierarquia vai acabar no século 21. Seremos destronados como modelos de inteligência. Estaremos preparados para o fim da nossa singularidade? Para o fim do nosso narcisismo? O mesmo em termos políticos. Não é preciso pintar cenários de catástrofe para esse mundo dominado pela inteligência artificial. As coisas podem ser mais sutis.

Durante milênios, as nossas sociedades foram sendo organizadas por princípios ou instituições que variaram menos do que imaginamos. Não interessa se falamos de democracias ou autocracias. Nossos regimes políticos seriam reconhecíveis por um grego do século 5º a.C.

Como seriam reconhecíveis os vícios e as virtudes dos nossos governantes. O que existe neles de racional ou irracional, pragmático ou irascível, louvável ou abominável. Um grego antigo, fascinado pela ideia platônica de rei-filósofo, saberia reconhecer que as nossas sociedades, tal como a dele, não conseguiram realizar esse ideal. Por quê?

Porque somos limitados. Não conseguimos processar toda informação que existe; não conhecemos as leis da natureza humana; não temos a sabedoria necessária para fazer as escolhas mais sábias. Como lembrava o príncipe da Dinamarca, temos tanto de nobreza como de pó.

A promessa da inteligência artificial é a promessa de um rei-filósofo, uma entidade capaz de fornecer respostas perfeitas, suprindo as paixões humanas. Qual é o problema? Mais uma vez, ninguém falou em problema. Mas como negar que existem dimensões da nossa existência que podem ser tão importantes ou até mais importantes do que esse utilitarismo digital? "Amo a justiça, mas amo também a minha mãe", dizia Camus sobre a luta pela libertação da Argélia e seus métodos mais radicais.

Como lembram os autores, conservar a nossa humanidade perante a contingência pode ser a única forma de conservamos também o nosso livre-arbítrio. De não sermos, enfim, meros escravos de um algoritmo. Nas obras sobre a inteligência artificial, normalmente encontramos dois extremos: um otimismo delirante e um pessimismo delirante, sem espaço para as questões fundamentais.

"Genesis" é um livro raro porque prefere as perguntas às respostas. Questiona se no futuro seremos nós a alinhar-nos às máquinas —uma simbiose neuronal, como defendem os transumanistas— ou se devem ser elas a alinharem-se aos nossos melhores valores humanos. Isso implica saber que valores são esses e quem somos nós. A vida será longa para quem procurar essas respostas.

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