O Globo
Bispo irritou militares ao denunciar a
tortura e apoiar movimentos por creches e moradia
Em novembro de 1978, a ditadura resolveu
investigar um gibi. A repressão queria saber quem financiava “As Aventuras de
Zé Marmita”. Distribuída na periferia de São Paulo, a revistinha narrava a
rotina nas fábricas e incentivava os trabalhadores a lutarem por melhores
condições de vida. Só podia ser coisa de dom Angélico, bispo tachado de
subversivo e adversário do regime.
Na juventude, Angélico Sândalo Bernardino não sabia se queria ser padre ou jornalista. Resolveu o dilema ao unir as duas vocações, ajudando a Igreja a se comunicar com os fiéis. Antes de ser ordenado, ele já escrevia no Diário de Notícias, da diocese de Ribeirão Preto. Mais tarde comandaria as “rádios-cornetas”, com alto-falantes pendurados nos postes de favelas e ocupações.
Em 1969, o religioso foi alvo da primeira
perseguição. A polícia quis prendê-lo por suposta ligação com a luta armada. A
Igreja saiu em defesa do padre, e a Justiça Militar arquivou o caso por falta
de provas. Dois anos depois, dom Angélico foi fichado como “elemento
reconhecidamente esquerdista”, envolvido em “atividades subversivas”. “O
epigrafado vem transformando o Diário de Notícias num autêntico órgão de
contestação revolucionária, semeando intrigas e mentiras contra as
autoridades”, esbravejaram os arapongas.
Além de ler os artigos de jornal, os
militares se infiltravam nas missas para ouvir os sermões. Em 1974, um informe
do II Exército relatou que ele “fez severas críticas ao governo, a quem acusou
de culpado pela falta de gêneros, pelo aumento do custo de vida e pelas longas
filas do INPS”. “Cristo foi considerado subversivo e por isso foi crucificado”,
acrescentou o religioso, para a ira dos espiões disfarçados entre os fiéis.
Em 1976, ele foi vigiado num encontro
católico em Barueri, onde acusou a repressão de usar “métodos bárbaros” para
“arrancar confissões”. Destemido, repetiria a denúncia numa igreja lotada após
o assassinato do operário Manoel Fiel Filho. “Quem não está vendo Deus a falar
da morte triste do metalúrgico? Como tantos outros, ele foi torturado”, pregou,
antes de se referir ao DOI-Codi como “casa de horrores”.
Incansável na defesa dos direitos humanos, o
cardeal Paulo Evaristo Arns escalou dom Angélico como bispo auxiliar na Zona
Leste. Ele passou a conviver com os órfãos do milagre brasileiro, que
batalhavam pela sobrevivência em ruas sem asfalto e saneamento básico. O
religioso abriu a igreja para os pobres, incentivou movimentos por creches e
por moradia, usou sua voz para pressionar os poderosos.
Em 1977, quando um trem se chocou com um
ônibus e matou 22 pessoas, ele ameaçou suspender a missa de domingo e se sentar
nos trilhos para exigir cancelas de segurança. A RFFSA, que fazia corpo mole,
teve que correr para instalar as barreiras.
Ao apoiar as greves do ABC, o bispo ficou
amigo de um sindicalista que, muito tempo depois, subiria a rampa do Planalto.
Em 2022, ele me disse que não se importava com patrulhas ideológicas. “A Igreja
nunca teve partido político. Nós saíamos com o povo reivindicando creche,
escola e hospital. Essa era a nossa subversão”, ironizou. “Nos chamavam de
comunistas, mas só estávamos ao lado dos trabalhadores.”
Após cinco meses de investigações, a ditadura
arquivou o caso do Zé Marmita. A Polícia Federal concluiu que não havia
financiadores ocultos. O gibi da pastoral de dom Angélico era rodado “mediante
doações em papel, impressão a preços menores e desenhos feitos por estudantes”.
O bispo morreu nesta terça, aos 92 anos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário