segunda-feira, 21 de abril de 2025

O erro da Europa - Denis Lerrer Rosenfield*

O Estado de S. Paulo

Pensaram que a globalização, em seu estilo liberal, teria vindo para ficar, capaz de absorver irrupções potenciais de violência

Hegel dizia, na Filosofia do Direito, que um Estado que não seja capaz de se expor numa situação de guerra equivale a um lago cujas águas paradas tendem a apodrecer. Cidadãos acostumados com seu próprio bem-estar social, voltados para os bens materiais, perdem no tempo o sentido da pátria e do coletivo, entregando-se ao usufruto desses bens, como se a vida a isso se resumisse. Tendem a não ver o perigo que os espreita.

Pense-se, neste sentido, no espírito e nas condições dos Estados europeus que, diante da invasão da Ucrânia pela Rússia, encontram-se frente a uma ameaça real, a guerra batendo às suas portas, sem que tivessem vislumbrado o que poderia lhes acontecer. Optaram, durante décadas, não pela liberdade, mas pela submissão ao guarda-chuva militar e nuclear americano, podendo dedicar-se somente ao bem-estar material de sua população. Viviam num mundo ficcional. Agora, foram acordados bruscamente, sendo ameaçados e não dispondo, por si mesmos, de condições adequadas de defesa. Eis o esforço descomunal que deverão fazer nos próximos anos, devendo, para isso, adquirir um novo espírito.

Logo, a Europa compreendeu, equivocadamente, as relações interestatais na perspectiva do reduzido número de países que vieram a constituir a União Europeia. Mantiveram a velha concepção, ultrapassada pelos fatos, de ser o centro do mundo. Apesar de seu número ser significativo conforme uma visão europeia, o mesmo não ocorre se a olharmos desde uma perspectiva mundial. A sua ideia, naquele então, estava voltada para a não repetição de sua história do século 20, quando a ideia iluminista de um progresso cultural tinha se espatifado em Auschwitz e na alta mortandade dessas duas últimas guerras.

Nessas, a população civil tornou-se alvo de ataques indiscriminados, culminando, inclusive, em bombardeios nucleares. Londres, Berlim, Dresden, Hiroshima e Nagasaki são os seus símbolos maiores, entre outras cidades. A violência tinha mudado de patamar. A criação da União Europeia foi pensada como um “não” à repetição dessa violência, com as potências beligerantes de então, sobretudo França e Alemanha, entrando numa estreita cooperação econômica e, posteriormente, política, institucional e financeira, com a adoção de uma moeda comum. O sonho kantiano de uma Liga das Nações começou a materializar-se na Comunidade Europeia e, posteriormente, na União Europeia.

Contudo, esse setor da Europa Ocidental, hoje expandindo-se para a Oriental, terminou por representar-se como sendo uma sinalização para a história mundial, abrindo-se, assim, a uma nova perspectiva de relações internacionais baseada na consecução da paz. A Europa viu-se como a concretização dessa nova era, dessa nova possibilidade de redução quase a zero de outra guerra. Acontece que, ao levar adiante esse projeto, abandonou a sua própria segurança, não criando nenhum poder militar supraestatal, permanecendo esse principalmente em mãos isoladas da França e do Reino Unido, que nem se aproximam dos poderios americano e russo. Apesar de ter conseguido eliminar o grande contencioso militar entre a Alemanha e a França, a União Europeia deixou como tarefa americana cuidar da União Soviética, por meio da criação da Otan. É como se a União Soviética e, posteriormente, a Rússia não fizessem parte do continente europeu, principalmente sua parte ocidental, a relevante em sua própria história. Dostoievski se dizia europeu.

Havia uma espécie de união ocidental, culturalmente falando, à qual a Rússia só dificilmente se encaixaria, em todo caso, o problema estaria sendo relegado a um futuro indeterminado, cabendo aos EUA encarregar-se das tarefas do presente, a saber, da sua segurança. Ao fazê-lo não deixou de abdicar de parte de sua soberania, pagando hoje o seu preço. Apostaram, inclusive, sobretudo a Alemanha, numa cooperação econômica com a Rússia, principalmente no setor do gás e, mesmo aqui, tornou-se ele também um instrumento de negociações que terminaram por envolver questões de soberania. Pensaram que a globalização, em seu estilo liberal, teria vindo para ficar, capaz de absorver irrupções potenciais de violência.

Atualmente, a Rússia ingressa novamente num contencioso militar, ameaçando diretamente a própria União Europeia. E os europeus são pegos desprevenidos. Acrescente-se, ainda, a nova doutrina americana, a de Trump, que não mais pretende seguir a ordem internacional liberal, liderada até então pelos próprios EUA. Considera o novo presidente que a defesa da Europa não é sua função e dos contribuintes americanos, mas dos europeus. Note-se, por último, que a Rússia, em sua justificativa ideológica, se apresenta como culturalmente diferente, portadora de outros valores que se oporiam aos ocidentais.

Errou a Europa ao considerar a Rússia como ocidental de uma ou outra maneira; errou ao descartar uma outra guerra europeia como possível; errou ao não se armar adequadamente. Errou ao delegar a sua defesa aos EUA.

*Professor de filosofia na Ufrgs

 

Nenhum comentário: