O Estado de S. Paulo
Pensaram que a globalização, em seu estilo
liberal, teria vindo para ficar, capaz de absorver irrupções potenciais de
violência
Hegel dizia, na Filosofia do Direito, que um
Estado que não seja capaz de se expor numa situação de guerra equivale a um
lago cujas águas paradas tendem a apodrecer. Cidadãos acostumados com seu
próprio bem-estar social, voltados para os bens materiais, perdem no tempo o
sentido da pátria e do coletivo, entregando-se ao usufruto desses bens, como se
a vida a isso se resumisse. Tendem a não ver o perigo que os espreita.
Pense-se, neste sentido, no espírito e nas condições dos Estados europeus que, diante da invasão da Ucrânia pela Rússia, encontram-se frente a uma ameaça real, a guerra batendo às suas portas, sem que tivessem vislumbrado o que poderia lhes acontecer. Optaram, durante décadas, não pela liberdade, mas pela submissão ao guarda-chuva militar e nuclear americano, podendo dedicar-se somente ao bem-estar material de sua população. Viviam num mundo ficcional. Agora, foram acordados bruscamente, sendo ameaçados e não dispondo, por si mesmos, de condições adequadas de defesa. Eis o esforço descomunal que deverão fazer nos próximos anos, devendo, para isso, adquirir um novo espírito.
Logo, a Europa compreendeu, equivocadamente,
as relações interestatais na perspectiva do reduzido número de países que
vieram a constituir a União Europeia. Mantiveram a velha concepção,
ultrapassada pelos fatos, de ser o centro do mundo. Apesar de seu número ser
significativo conforme uma visão europeia, o mesmo não ocorre se a olharmos
desde uma perspectiva mundial. A sua ideia, naquele então, estava voltada para
a não repetição de sua história do século 20, quando a ideia iluminista de um
progresso cultural tinha se espatifado em Auschwitz e na alta mortandade dessas
duas últimas guerras.
Nessas, a população civil tornou-se alvo de
ataques indiscriminados, culminando, inclusive, em bombardeios nucleares.
Londres, Berlim, Dresden, Hiroshima e Nagasaki são os seus símbolos maiores,
entre outras cidades. A violência tinha mudado de patamar. A criação da União
Europeia foi pensada como um “não” à repetição dessa violência, com as
potências beligerantes de então, sobretudo França e Alemanha, entrando numa
estreita cooperação econômica e, posteriormente, política, institucional e
financeira, com a adoção de uma moeda comum. O sonho kantiano de uma Liga das
Nações começou a materializar-se na Comunidade Europeia e, posteriormente, na
União Europeia.
Contudo, esse setor da Europa Ocidental, hoje
expandindo-se para a Oriental, terminou por representar-se como sendo uma
sinalização para a história mundial, abrindo-se, assim, a uma nova perspectiva
de relações internacionais baseada na consecução da paz. A Europa viu-se como a
concretização dessa nova era, dessa nova possibilidade de redução quase a zero
de outra guerra. Acontece que, ao levar adiante esse projeto, abandonou a sua
própria segurança, não criando nenhum poder militar supraestatal, permanecendo
esse principalmente em mãos isoladas da França e do Reino Unido, que nem se
aproximam dos poderios americano e russo. Apesar de ter conseguido eliminar o
grande contencioso militar entre a Alemanha e a França, a União Europeia deixou
como tarefa americana cuidar da União Soviética, por meio da criação da Otan. É
como se a União Soviética e, posteriormente, a Rússia não fizessem parte do
continente europeu, principalmente sua parte ocidental, a relevante em sua
própria história. Dostoievski se dizia europeu.
Havia uma espécie de união ocidental,
culturalmente falando, à qual a Rússia só dificilmente se encaixaria, em todo
caso, o problema estaria sendo relegado a um futuro indeterminado, cabendo aos
EUA encarregar-se das tarefas do presente, a saber, da sua segurança. Ao
fazê-lo não deixou de abdicar de parte de sua soberania, pagando hoje o seu
preço. Apostaram, inclusive, sobretudo a Alemanha, numa cooperação econômica
com a Rússia, principalmente no setor do gás e, mesmo aqui, tornou-se ele
também um instrumento de negociações que terminaram por envolver questões de
soberania. Pensaram que a globalização, em seu estilo liberal, teria vindo para
ficar, capaz de absorver irrupções potenciais de violência.
Atualmente, a Rússia ingressa novamente num
contencioso militar, ameaçando diretamente a própria União Europeia. E os
europeus são pegos desprevenidos. Acrescente-se, ainda, a nova doutrina
americana, a de Trump, que não mais pretende seguir a ordem internacional
liberal, liderada até então pelos próprios EUA. Considera o novo presidente que
a defesa da Europa não é sua função e dos contribuintes americanos, mas dos
europeus. Note-se, por último, que a Rússia, em sua justificativa ideológica,
se apresenta como culturalmente diferente, portadora de outros valores que se
oporiam aos ocidentais.
Errou a Europa ao considerar a Rússia como
ocidental de uma ou outra maneira; errou ao descartar uma outra guerra europeia
como possível; errou ao não se armar adequadamente. Errou ao delegar a sua
defesa aos EUA.
*Professor de filosofia na Ufrgs
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