Valor Econômico
Vemos comportamentos de um parlamentarismo de
roça, da cumplicidade e da clientela, dos devedores de favores, de relações de
troca de natureza pessoal
“Coronelismo, enxada e voto”, de Victor Nunes
Leal, que foi ministro do STF, cassado pelo golpe militar de 1964, é um
clássico dos estudos sobre a nossa deformada realidade política. Temos nele um
retrato melancólico do que se pode definir como estruturas fundamentais do
poder de um país crônica e politicamente atrasado.
Um país em que a República não criou uma
forma propriamente republicana de representação política porque limitou-a a
minorias residuais de um passado não democrático, de uma sociedade sem povo. A
maioria procedia ou da escravidão ou de diferentes formas sociais de sujeição e
anulação da vontade.
Para compreender as artimanhas de agora do presidente do Senado e artimanhas outras da política brasileira, esse livro é um guia, uma revelação das ocultações que fazem do sistema político uma trama de régulos de província, barões feudais cuja prática se orienta no sentido de desgovernar para mandar.
Mesmo o mais ínfimo dos políticos, ainda que
seja um analfabeto ou um semiletrado, se conseguir chegar a um dos mandatos da
estrutura política, imediatamente percebe que tem mais poder do que atributos
para exercê-lo. Ou mesmo do que merece.
É ele vítima de uma concepção de democracia
inacabada que nunca será democrática de verdade nem será expressão de um querer
político socialmente possível e necessário. O da democracia de direitos
igualitários. Mesmo dos que não sabem que os têm mas podem descobri-los.
Estamos metidos no atoleiro de um
democratismo pobre, fundado num senso comum mais pobre ainda, expressão de
resquícios poderosos de analfabetismo e ignorância. O de que quem manipula e
berra mais pode muito mais do que quem tem competência para poder.
Os três poderes foram intencionalmente
fragilizados pelo bolsonarismo. Ninguém com um mínimo de competência para
compreender o processo político deixou de compreender o que foi a lenta e
segura ascensão política de Bolsonaro como ascensão anômala de uma família
inteira. Mais ainda. Já nas vésperas da eleição que o levou ao poder, era
possível ver que se tratava de uma trama resultante da manipulação dos aspectos
mais problemáticos de nosso atraso político.
Especialmente manipulação do nosso atraso
pré-moderno, rústico, baseado em valores do clientelismo político, da troca de
favores políticos por econômicos, ou vice-versa, e completa ignorância do que é
honestidade e corrupção.
No geral, uma ingenuidade que supõe que o
poder e o poderoso, se for o “meu poderoso”, é justo, honesto e “meu amigo”.
Não é preciso muito esforço para perceber aí um sistema de lealdades baseado na
sujeição e na minimização da própria vontade e dos próprios interesses.
Bolsonaro nunca demonstrou competência nem
discernimento para ter todo esse poder. Grandes mudanças na mentalidade do povo
brasileiro a partir do fim da ditadura militar formaram uma disponibilidade
excessiva para acolher alguém que preenchesse a carência de um feitor de
senzala que desse a segurança de ter o país sob alguém que manda e manda em
gente.
Essa disponibilidade agravou-se e muito com a
mobilização político-ideológica dos evangélicos de igrejas e seitas
fundamentalistas e de um sistema de cumplicidade de pastores hábeis em
ressaltar a enorme relevância do dízimo para uma ideologia da cumplicidade de
Deus e dos políticos.
A composição anômala e não representativa da
diversidade do povo brasileiro nas duas casas do Congresso Nacional comprometeu
nossa representação política pelas próximas décadas. Anulou a
representatividade do Congresso e complicou e mesmo limitou o que é próprio do
Poder Executivo.
Não é estranho, portanto, que o presidente do
Senado se comporte e faça exigências como primeiro-ministro de um
parlamentarismo que não temos, mas que é de parlamentarismo de roça, da
cumplicidade e da clientela, dos devedores de favores, de relações de troca de
natureza pessoal. O Parlamento está mutilado.
Não é estranho que vejamos ali demonstrações
de uma mentalidade de botequim, mesmo tendo as duas Casas, como seus membros,
representantes do que de melhor existe na realidade social brasileira.
Parlamentares de excepcional grandeza e de extraordinária lucidez todos os dias
colocados em face de desafios de contendores despreparados. Sem educação, sem
respeito, sem valores, cuja concepção de política está reduzida a técnicas de
bajulação de poderosos ocultos e ausentes. Até de gente que está na cadeia e
que, segundo as condenações que receberam, lá ficarão por longo tempo.
Tudo indica, porém, que esse longo tempo não
será suficiente para que eleições regulares consertem as deformações e
anomalias de representação que levaram e têm levado os bolsonaristas ao poder.

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