domingo, 20 de setembro de 2020

Bernardo Mello Franco - Cabeça de papel

- O Globo 

 A Fundação Nacional de Artes já foi presidida por grandes figuras da cultura brasileira, como o cartunista Ziraldo, o poeta Ferreira Gullar e o ator Sérgio Mamberti. Agora será chefiada pelo coronel Lamartine Barbosa Holanda, paraquedista, bolsonarista e fã de filmes militares. 

O currículo do oficial da reserva traz informações curiosas. Ele se apresenta como especialista em logística, segurança e telecomunicações. Também diz ser ex-presidente da Câmara de Comércio Brasil-Albânia e oferece serviços de “consultor militar”. 

 A nomeação gerou espanto, mas o coronel informou que fez curso de roteirista e foi escolhido “por capacitação”. Ao repórter Vinicius Sassine, ele acrescentou que convive com o cinema “desde pequeno”, quando visitava uma fábrica de películas no Rio Grande do Sul. “Meu pai me levava lá para enrolar e desenrolar filme”, explicou. 

Lamartine caiu nas graças do bolsonarismo em 2019, ao acompanhar uma agenda do capitão e deputado estadual Castello Branco, do PSL. Os dois foram à sede da Cinemateca Brasileira e anunciaram uma mostra de filmes militares. Ao fim do vídeo, repetiram o slogan de campanha do presidente (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”) e prestaram continência a uma câmera de celular. 

A performance repercutiu mal, e a mostra não saiu do papel. No mês passado, a Cinemateca fechou as portas porque o governo se recusou a renovar seu contrato de gestão. Os 51 funcionários foram demitidos, e um acervo de 250 mil rolos está em perigo. O único felizardo da história é o coronel Lamartine, que faturou a boquinha federal. 

Nem na ditadura a Funarte havia sido comandada por um militar. Ao fundá-la, em 1975, o governo Geisel entregou a presidência ao escritor José Cândido de Carvalho, autor de “O coronel e o lobisomem”. Sua gestão lançou o Projeto Pixinguinha, uma joia idealizada pelo produtor Hermínio Bello de Carvalho. 

A nomeação do paraquedista engorda o cabide verde-oliva em Brasília. Em julho, o Tribunal de Contas da União informou que 6.157 militares já estavam pendurados em cargos civis. O governo ainda mantém dez oficiais em postos de ministro. 

Lamartine inaugura a presença da farda na área cultural, uma das únicas que ainda estavam livres da influência dos quartéis. O coronel já deixou claro que insistirá na organização de uma mostra de filmes de guerra. A obsessão combina com o ideário de Bolsonaro para o setor. 

No ano passado, o presidente disse que pretendia impor um “filtro” ao financiamento do cinema brasileiro. A ideia era barrar “filmes pornográficos” e incentivar produções que exaltem “heróis brasileiros”. O anúncio foi interpretado como tentativa de censura. 

Bolsonaro tem a quem puxar. Em 1972, o general Medici afirmou que o filme “Independência ou morte” marcaria o início de uma “nova era” do cinema brasileiro. O elenco foi ao Planalto para uma sessão de beija-mão, na qual o presidente se comparou a Dom Pedro. Em pouco tempo, a produção chapa-branca caiu no esquecimento. Hoje o gênero mais associado à ditadura é a pornochanchada.

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