Não
há como fugir à constatação de que prefeito venceu no primeiro turno em
territórios controlados por uma milícia específica
No
primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, Bruno Covas (PSDB) obteve
33% dos votos, e Guilherme Boulos (PSOL), seu rival no segundo turno, 20%. A
ampla diferença, de 13 pontos percentuais, refletiu-se no triunfo de Covas em
todos os distritos da capital paulista. No primeiro turno do Rio de Janeiro,
Eduardo Paes (DEM) conseguiu 37% dos votos, contra 22% de Marcelo Crivella
(Republicanos). Mas a diferença, de 15 pontos percentuais, não se traduziu por
vitórias de Paes em todos os distritos. O atual prefeito venceu em cinco zonas
eleitorais, quatro delas situadas na Zona Oeste. O mapa eleitoral conta uma
história sobre o Rio.
Há
uma regra sociológica geral, violada pelo mapa do primeiro turno no Rio. No
caso de eleições decididas por margens apertadas, é normal que se verifiquem
vencedores distintos em diferentes regiões. Contudo, em pleitos muito
assimétricos, o primeiro colocado triunfa em todas as grandes regiões. As
exceções merecem análise específica, pois decorrem de cisões sociais marcantes.
O mapa de Crivella inscreve-se nessa categoria.
A cisão de renda não explica o fenômeno. Certamente, o atual prefeito obteve suas escassas vitórias em áreas pobres da cidade — mas não em todas, nem na maioria delas. O cenário Leblon versus Campo Grande, tão atraente para analistas apressados, distorce radicalmente a realidade eleitoral do primeiro turno. Prova disso está nos triunfos de Paes em diversos bairros ainda mais pobres da própria Zona Oeste.
A
influência neopentecostal da Igreja Universal explica apenas um aspecto do
fenômeno. A Universal opera com força em quase todas as periferias da cidade,
não apenas nos bairros que deram maioria ao prefeito. Não há como fugir à
constatação de que Crivella venceu em territórios controlados por uma milícia
específica.
A
territorialização de grupos armados ilegais percorre duas etapas clássicas. Na
primeira, os milicianos estabelecem redes de negócios, explorando o mercado
compulsório formado pelos habitantes das áreas sob seu domínio. Na segunda, a
fim de consolidar tais atividades econômicas, infiltram-se na esfera política,
capturando instituições estatais. O mapa de Crivella evidencia o grau de
progresso das milícias cariocas nessa direção.
No
Rio, as milícias nasceram no interior da polícia, um aparato estatal, e já
operam há tempo na política, elegendo vereadores e deputados. A impunidade
prolongada dos grupos de milicianos, bem como a natureza explícita de seus
negócios, indica a cumplicidade passiva ou ativa de sucessivos governos
estaduais e municipais com essas organizações criminosas. Policiais-milicianos
foram celebrados e agraciados por comendas parlamentares. As casamatas das
milícias atravessaram, intocadas, o longo período de intervenção militar
federal na segurança pública do estado. Hoje, em certas regiões da cidade, como
revela o mapa de Crivella, as milícias sequestraram o direito de voto dos
cidadãos.
Campo
Grande, centro do mapa de Crivella, é a base da Liga da Justiça (hoje Bonde do
Ecko), maior milícia carioca, fundada pelos irmãos Natalino Guimarães,
ex-deputado estadual, e Jerominho Guimarães, ex-vereador. A milícia expandiu-se
para a Baixada Fluminense e controla negócios variados e bem conhecidos, com um
foco especial em condomínios do programa Minha Casa Minha Vida.
As
empresas do grupo financiam campanhas eleitorais de inúmeros candidatos. Um
inquérito policial apura o envolvimento de milicianos do Bonde do Ecko no
assassinato de diversos pré-candidatos rivais às câmaras de vereadores da
Baixada Fluminense, do ano passado para cá. Desde as eleições de 2016, a
organização criminosa tem candidato a prefeito — e o nome dele é Crivella. A
cruz do pastor e a arma do miliciano marcham juntas na Zona Oeste do Rio.
O
conceito de “Estado falido” aplica-se aos países em que o poder estatal perdeu,
total ou parcialmente, o monopólio da força. O Brasil ainda não pode ser
rotulado como “Estado falido”, mas a classificação descreve à perfeição a
paisagem de sua segunda maior cidade. O mapa eleitoral não mente.
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