O Estado de S. Paulo
Proposta fatalmente levará à permanente revisão constitucional anual do Orçamento, com endividamento público crescente
O pano de fundo da Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) apresentada pela equipe do presidente eleito – a chamada PEC
da Transição – não é a viabilidade fiscal de seu programa de mitigação da
pobreza, isto é, a reedição de um Bolsa Família um pouco mais abrangente. O
futuro governo pode, se quiser, manter o Auxílio Brasil no ano que vem, via
créditos extraordinários, como propõe o senador Renan Calheiros.
Com o objetivo de salvar um regime fiscal mal construído, sem precedentes internacionais, assistimos a um jogo em que defensores do teto de gastos tentam, a qualquer preço, afastar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) do debate. Seu objetivo implícito é deixar o Poder Executivo sem margem de manobra na política fiscal e refém do Congresso.
O Legislativo está sendo pressionado para
mudar a Constituição ampliando o espaço fiscal do chamado teto de gastos, que
limita por 20 anos o crescimento da despesa à taxa de inflação. Se esse for o
único objetivo da medida, não é necessário adotar a mudança. O teto introduzido
na Constituição em 2016 não impede despesas financiadas por meio de créditos
extraordinários no Orçamento, desde que os recursos sejam alocados em programas
governamentais urgentes e em situação de imprevisibilidade. É precisamente o
que acontece com o Auxílio Brasil. Tendo em vista os indicadores sociais que
apontam para um alarmante crescimento da pobreza e da fome no País, a medida é
claramente urgente. Ademais, o governo Bolsonaro não previu recursos para sua
manutenção, na proposta de Orçamento do ano que vem, o que caracteriza a
imprevisibilidade da despesa. Em suma: não precisa emendar a Constituição para manter
o Auxílio Brasil em 2023.
O presidente eleito se empenhou em
negociação cara e difícil, alegando o objetivo de conseguir margem fiscal para
tocar uma política econômica de reconstrução do Estado, de preferência durante
todo o seu mandato. Porém, ao limitar o crescimento de despesas obrigatórias
que o Poder Executivo não controla, como, por exemplo, as da Previdência
Social, o teto de gastos exige forte redução das despesas discricionárias em
áreas fundamentais, como saúde, educação e meio ambiente. Com isso, o controle
da legalidade fiscal do Orçamento está nas mãos do Congresso, e não do governo,
uma vez que não há como escapar do teto sem alterar a Constituição.
Entretanto, já existe um rico arcabouço
fiscal pronto para retornar ao campo macrofiscal brasileiro: a LRF, a lei que
sustenta o tripé macroeconômico brasileiro (câmbio flutuante, metas de inflação
e meta fiscal). Alguns que tentam salvar o regime baseado no teto de gastos –
uma regra repetidamente malsucedida – parecem inclinados a um verdadeiro
obscurantismo fiscal.
A LRF aposta no planejamento e na
transparência como princípios fundamentais de uma gestão fiscal responsável,
inspirada na experiência neozelandesa. A Nova Zelândia formulou as políticas
inovadoras de metas de inflação e as leis de responsabilidade fiscal espalhadas
no mundo.
Para evitar desequilíbrios orçamentários, a
nossa LRF se apoia numa âncora fiscal – o limite de endividamento a ser
regulamentado pelo Senado – e numa meta fiscal para conduzir o dia a dia da
gestão, com o intuito de alcançar os objetivos de médio prazo da política
orçamentária ancorados em limites de endividamento.
Desde a Constituinte, optou-se por fixar
limites de endividamento no País. A recente Emenda Constitucional n.º 109, de
2021, introduziu no art. 163 da Constituição um dispositivo que obriga a adoção
de limites para controlar a trajetória da dívida pública. A LRF tem um arsenal
de regras para assegurar que esses limites sejam gerenciados com flexibilidade,
transparência e efetividade, funcionado como instrumento de ancoragem das
expectativas em relação aos objetivos da política fiscal no médio prazo.
Os técnicos do Tesouro Nacional
neozelandês, considerado o mais responsável do planeta, recomendam duas regras
fiscais para o futuro das contas públicas: o limite de dívida (debt ceiling) e
uma regra fiscal de resultado operacional. O diretor do Fundo Monetário
Internacional (FMI) Vítor Gaspar, considerado uma autoridade no tema, considera
as regras de controle do endividamento como a necessária âncora fiscal de um
país. Mas alguns defensores do teto de gastos incrustado na Constituição tentam
desacreditar o regime fiscal da Constituição e da LRF, desconhecendo que seu
art. 4.º permite especificamente a adoção de regras de controle da despesa por
meio de metas fiscais plurianuais.
A Proposta de Emenda à Constituição,
negociada entre o presidente eleito e a liderança mais conservadora do
Congresso, fatalmente levará à permanente revisão constitucional anual do
Orçamento, com endividamento público crescente, ou a adiar a improvisação de um
novo arcabouço fiscal.
Como deputado constituinte, fui responsável
pelo capítulo das finanças públicas da Constituição de 1988. Por essa razão, e
também como membro da equipe que criou, no País, o tripé macroeconômico, sob
liderança do presidente Fernando Henrique, defendo a substituição do atual teto
de gastos pelo regime fiscal da LRF, com metas de endividamento e metas
fiscais.
*Senador (PSDB-SP)
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