Folha de S. Paulo
Poder e autoridade judicial
são fenômenos semelhantes
Certa vez fui despachar com
um jovem magistrado, que me interrompeu no meio de uma frase: "Já entendi,
o senhor está dizendo que eu errei". Percebendo a minha perplexidade,
voltou-me sua folha de anotações, onde estava escrito, em letras garrafais:
"Errei!!! Corrigir", numa clara demonstração de que sua autoridade
não estava em jogo.
Poder e autoridade judicial
são fenômenos semelhantes. Ambos se referem a capacidade de um juiz ou tribunal
de impor conduta a outro agente. O respeito à autoridade judicial, no entanto,
está intrinsecamente associado à imparcialidade, objetividade e rigor com que
um juiz ou tribunal aplicam a lei. Já a submissão ao poder judicial decorre,
sobretudo, do medo de sofrer alguma forma de coerção.
Os atritos entre a Justiça
do Trabalho e o Supremo Tribunal
Federal têm origem na forma equivocada como o Supremo vem aplicando a
legislação trabalhista, assim como as normas constitucionais relativas ao
direito do trabalho, nos últimos anos.
Sob o pretexto de que a Justiça do Trabalho estaria confrontando a jurisprudência do Supremo, diversos de seus ministros têm cassado decisões proferidas por juízes e tribunais do trabalho que, no exercício de suas competências constitucionais, detectaram a existência de fraude na contratação de trabalhadores, por meio de pessoas jurídicas.
A pejotização é
um neologismo cunhado para designar um tipo de fraude contratual, voltada a
suprimir o acesso do trabalhador aos seus direitos previstos na Constituição e
na legislação trabalhista, além de promover a evasão fiscal e previdenciária.
Não importa se por
preconceitos contra os trabalhadores
CLT, viés ideológico, ou por simples desconhecimento da legislação
trabalhista, inúmeras decisões do Supremo vêm incentivando a substituição de
contratos de trabalho por contratos civis ou comerciais com pessoas jurídicas
(MPE e MEI), compostas na grande maioria dos casos apenas pelos seus sócios
proprietários. Esses "empreendedores", no entanto, continuam mantendo
relação de trabalho marcada pela pessoalidade e subordinação.
Sob a justificativa de
valorizar a livre iniciativa e formas mais flexíveis de relações de trabalho, a
postura do Supremo tem permitido que um número cada vez maior de empregadores
deixe de recolher devidamente encargos sociais, como INSS, FGTS ou PIS, ampliando
a crise da previdência e sobrecarregando os setores que contratam de acordo com
a CLT e cumprem com as suas obrigações patronais.
Paralelamente, esse esquema
também favorece a evasão do imposto de
renda, por parte de trabalhadores contratados através de pessoas jurídicas,
contribuindo para ampliar ainda mais a já perversa regressividade de nosso
sistema tributário. Estima-se uma redução de cerca de 88% no valor de imposto
de renda a ser recolhido com esse esquema. Desnecessário lembrar que, no país
dos privilégios, essa redução de imposto de renda favorecerá, sobretudo, os
trabalhadores mais ricos.
A postura do Supremo, por
fim, tem contribuído para a precarização das relações de trabalho, impedindo o
acesso do trabalhador a direitos básicos estabelecidos pela Constituição, como
descanso semanal remunerado, limitação da jornada de trabalho ou décimo
terceiro salário, além de não ser discriminado em face de sua raça ou gênero.
Torço para que o Supremo não
use o seu poder para ganhar o braço de ferro com a Justiça do Trabalho. Ao
julgar a tese de repercussão geral 1389, o tribunal terá a oportunidade de
corrigir a confusão por ele criada e, como fez o jovem magistrado, restabelecer
sua autoridade.
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