terça-feira, 22 de abril de 2025

O peso de Trump na sucessão de Francisco - Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Audiência de JD Vance, na véspera da morte, escancara disputa por rumos do catolicismo depois da morte do maior opositor do trumpismo

O papa Francisco recebeu o vice-presidente dos EUA, JD Vance, em audiência de 15 minutos que precedeu seu deslocamento até o balcão da Basílica de São Pedro para a saudação pascal. A audiência de Vance somou-se a uma série de compromissos que, em retrospecto, pareceram uma despedida. Francisco visitou uma prisão em Roma e ainda saudou, do papamóvel, a multidão na praça, o que não fazia desde fevereiro, quando foi hospitalizado.

Na audiência, a última antes de sua morte, Vance recebeu do papa ovos de Páscoa de uma marca italiana para os filhos, uma gravata e rosários para toda a família. O encontro não estava confirmado quando Vance chegou a Roma. Na véspera, o vice americano tinha estado com o secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin. Pelas notas oficiais de cada lado - “troca de opiniões sobre países afetados pela guerra, tensões políticas e situações humanitárias difíceis, como as de migrantes, refugiados e prisioneiros” (Vaticano) e “partilha da fé religiosa, do catolicismo nos EUA, perseguição de comunidades cristãs no mundo e compromisso do presidente Trump pela restauração da paz” (Vance) - conclui-se que não convergiram.

No dia seguinte, veio o encontro entre o primeiro na linha sucessória da Casa Branca e o chefe de Estado de mais longeva e consistente contestação ao trumpismo. Ao lamentar sua morte, Vance anexou à sua mensagem uma homilia de 27 de março de 2020.

Naquele dia em que a Itália era o epicentro da epidemia da Covid-19, Francisco celebrou a missa numa praça Praça de São Pedro vazia e chuvosa. Na ocasião, relembrou passagem da bíblia em que Jesus dormia numa embarcação durante tempestade ante discípulos incrédulos. Ao acordar, indagou: “Por que temeis, homens de pouca fé?”. Francisco valeu-se da imagem para dizer que, com Deus a bordo, não haverá naufrágio.

A menção a esta homilia sugere a disposição americana em disputar a influência sobre os rumos da Igreja Católica com a partida do papa. Naquela pandemia, JD Vance havia acabado de se converter ao catolicismo, religião cuja resistência conservadora a Francisco teve nos EUA um de seus principais redutos e à qual está filiado um terço do governo Trump, entre os quais o secretário de Estado Marco Rubio.

Vance ignora os embates que Francisco teve com o negacionismo trumpista na pandemia e sugere que não se deve perder a fé num momento em que a ordem mundial, sacudida pelos EUA, parece estar submergindo. Em artigo de julho do ano passado para a “The New Yorker”, Paul Elie, ao discorrer sobre a conversão de Vance ao catolicismo, sugere outra hipótese. Cita a percepção de Mark Lilla, professor na Universidade de Columbia, sobre o uso que os líderes da extrema-direita fazem da superioridade moral, hierarquia e tradição da Igreja Católica como licença para contornar os constrangimentos impostos pelas instituições democráticas à sua visão sobre a modernidade - do aborto à pauta LGBT, passando pelos imigrantes.

Enquanto esteve no ringue, Francisco se insurgiu contra esta instrumentalização. Antes de sua internação, o papa contestou, em carta aos bispos americanos, o uso que Vance fez do conceito teológico da “ordo amoris” (ordem do amor) para justificar a política migratória.

Ao receber Vance em sua despedida, a despeito dos embates que com ele travou, Francisco manteve uma porta aberta com a banda da igreja católica americana com quem ainda mantinha diálogo ante outra mais radicalizada, dos “sedevacantistas”, que não reconhecem a autoridade papal desde o Concílio Vaticano II, na década de 1960. Entre outras mudanças, aquele concílio desobrigou missas em latim e abriu a Igreja para o diálogo com a ciência e outras religiões.

Vance faz dobradinha com Brian Burch, o embaixador dos EUA na Santa Sé. Com nove filhos, Burch é presidente do “Voto Católico”, ONG que tem se insurgido contra os ataques às instituições pró-vida vitoriosas com a decisão da Suprema Corte que reconheceu a supremacia dos Estados sobre o aborto.

Vance e Burch são mais moderados que o ideólogo da extrema-direita Steve Bannon ou cardeais como Raymond Burke, nomeado pelo papa Bento 16. Em 2019, Burke publicou, junto com outros cardeais ultraconservadores a “declaração de verdades” em que acusava Francisco de desorientar a igreja sobre divórcio, contracepção, homossexualidade e gênero.

Nem a turma de Vance nem a de Burke superam a ala da igreja americana alinhada ao papado de Francisco, como o cardeal de Chicago, Blase Cupich, ou mesmo o camerlengo da Santa Sé, Kevin Farrell, que organizará o funeral e o conclave para a escolha do próximo papa. Farrel é irlandês, mas comandou as dioceses de Dallas e Washington por quase 20 anos até ser levado pelo papa para o Vaticano.

Nenhum dos nomes listados à sucessão - Pietro Parolin, Luis Antonio Tagle (Filipinas), Peter Turkson (Gana), Matteo Zuppi (presidente da Conferência Episcopal) - parece despontar em condições de ganhar sem aliança. É sobre essas alianças que a ala dos cardeais mais conservadores, que o catolicismo de JD Vance busca unificar, atuará.

Com as nomeações que fez ao longo de seus 13 anos como papa, concentradas na África, Ásia e Oceania, e a régua dos 80 anos para a elegibilidade, Francisco acabou por concentrar 80% do próximo conclave, o que alimenta a expectativa de que a revolução de Francisco se renovará.

 

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