Que sucessor saiba manter legado de Francisco
O Globo
Ao longo de 12 anos de papado, pontífice
argentino deu inúmeras contribuições para modernizar Igreja
A sensatez, a tolerância e o ímpeto
reformador demonstrados ao longo dos 12 anos de papado do argentino Jorge Mario
Bergoglio, o Papa
Francisco, farão falta à Igreja e ao mundo. Francisco, papa improvável
vindo “do fim do mundo”, como ele próprio dizia, deixa um legado de
transformação, inclusão e descentralização que desafiará seu sucessor.
Foram muitas as contribuições do primeiro pontífice latino-americano para chacoalhar uma Igreja mergulhada em crises e às voltas com a perda de fiéis. Depois de pouco mais de uma década, as reformas podem não ter alterado a doutrina católica, nem ter sido tão abrangentes quanto alguns desejariam, mas, contrariando setores conservadores poderosos, Francisco trouxe a Igreja para o século XXI.
Teve a coragem de combater um dos maiores
tabus — e chagas — que atormentavam a Santa Sé: os escândalos envolvendo abuso
de menores por religiosos, historicamente tratados com leniência vergonhosa. Em
2019, promoveu uma inédita reunião de cúpula sobre proteção de menores. Dois
anos depois, fez a mais profunda revisão do Código de Direito Canônico em
quatro décadas, estabelecendo regras rígidas contra a pedofilia e abusos de
menores. Também enfrentou com firmeza escândalos financeiros, criando um
Secretariado de Economia, implementando medidas anticorrupção e atuando para
sanear o Banco do Vaticano.
Recebeu elogios dos mais progressistas e
críticas dos mais conservadores ao acenar à comunidade LGBTQIAP+. Embora o
Vaticano não tenha chancelado a união entre casais do mesmo sexo, a tolerância
demonstrada por Francisco representou um ponto de inflexão. Em voo de volta a
Roma depois de participar da Jornada Mundial da Juventude no Rio, em 2013, ele
afirmou, em resposta a pergunta da repórter Ilze Scamparini, que homossexuais
não devem ser discriminados, e sim integrados à sociedade: “Se alguém é gay, procura
Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, para julgar?”.
Francisco sempre se mostrou sensível às
angústias globais. Em 2015, o Vaticano publicou a encíclica “Laudato Si’ ”
(Louvado Seja), que alertava sobre os efeitos devastadores das mudanças
climáticas — a primeira sobre meio ambiente e inequívoco sinal de modernidade.
Migrantes e refugiados foram preocupação constante — um de seus primeiros atos
foi jogar uma coroa de flores em homenagem aos náufragos que buscavam futuro
melhor na Europa. Incentivou o diálogo entre as diversas religiões. Rezou no
Muro das Lamentações em Jerusalém e visitou o Iraque, nação muçulmana de
maioria xiita. Na tentativa de aproximar a Igreja das periferias, mexeu na
estrutura eurocêntrica sedimentada ao longo de séculos na Igreja. Abriu espaço
a cardeais da África, da Ásia e da América Latina, buscando a descentralização.
Quando assumiu o papado em 2013, mais da metade dos cardeais eram europeus.
Hoje, menos de 40%.
É certo que o papado de Francisco é
interrompido sem que a Igreja tenha avançado em questões sensíveis, como
ordenamento de mulheres, celibato clerical, aborto ou divórcio. Mas houve
passos importantes. Caberá ao próximo papa ir além. É provável que haja menos
resistência. Dos 141 cardeais com menos de 80 anos (os eleitores do futuro
pontífice), 111 foram nomeados por Francisco. Que o futuro líder da Igreja
consiga manter — e ampliar — o legado louvável de Francisco.
Autoridades deveriam se importar mais com a
crise da segurança
O Globo
Pesquisa Datafolha confirma que violência se
consolida como maior preocupação da população
Mais da metade dos brasileiros (58%) diz ter
percebido aumento da violência em suas cidades nos últimos 12 meses, segundo o
Datafolha. Apenas 15% consideram que a criminalidade caiu. A sensação de
insegurança se espalha entre homens, mulheres, diferentes faixas etárias e de
renda. Os números expõem o medo dos cidadãos diante de uma rotina de assaltos,
furtos, tiroteios e assassinatos que parece não ter fim — e com que as
autoridades aparentam não se importar.
A piora na criminalidade é percebida
principalmente por moradores do Sudeste (64%) e das regiões metropolitanas
(66%), mas habitantes de cidades do interior também notaram agravamento. A
deterioração é mais sentida nos extremos da sociedade: 59% entre os que têm
renda familiar até dois salários mínimos e 64% entre os que ganham mais de dez.
O roubo de celular é um dos crimes que mais
afligem moradores das grandes cidades. De acordo com a pesquisa, atingiu um a
cada dez brasileiros nos últimos 12 meses. O dado reforça a escalada desse tipo
de delito, que abre portas a golpes financeiros. O Anuário do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública mostrou que quase 1 milhão de aparelhos foram furtados ou
roubados em 2023, ou mais de cem por hora.
Os números traduzem a urgência de os governos
federal e estaduais apresentarem medidas para conter a onda de violência. A
crise é grave, abrangente e não comporta soluções paliativas. Vastas extensões
do território nacional são controladas por organizações criminosas que travam
guerras pelo comércio de drogas. No Rio, quadrilhas chegam ao cúmulo de
instalar barricadas e até portões no acesso a seus domínios para impedir a
entrada da polícia.
Em vez de darem respostas adequadas às
angústias da população, governo federal e estados disputam o protagonismo. A
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança, que reúne medidas
sensatas no combate ao crime organizado, enfrenta todo tipo de resistência. Não
só de parlamentares, mas também de governadores. Os estados alegam
interferência indevida em suas atribuições. O Ministério da Justiça se queixa
da falta de cooperação. E assim não se avança.
O grave e complexo problema da violência não
será resolvido com operações policiais atabalhoadas, mas com a integração
efetiva entre todas as forças de segurança, uso de inteligência e tecnologia,
investigações sobre movimentações financeiras, compartilhamento de dados e
maior protagonismo do governo federal.
Quanto mais tempo o Planalto e os estados demorarem, mais difíceis as respostas se tornarão, uma vez que as organizações criminosas se expandem no vácuo do Estado. O país precisa se unir para combatê-las. Não há outra saída. Os sinais de que a crise se agrava estão por toda parte. Independentemente de onde estejam, cidadãos têm medo de sair às ruas. Estão acuados pelos criminosos dentro de suas próprias casas. As autoridades ainda parecem ignorar o ponto a que a situação chegou, mas a população já percebeu faz tempo.
Francisco e o tempo da Igreja
Folha de S. Paulo
Papa de ideias progressistas introduziu
mudanças sutis, mas sem afrontar tradições do catolicismo, avesso a revoluções
O tempo da Igreja Católica não é o tempo das
pessoas. Quer você acredite que ela atua sempre sob inspiração de Deus, quer a
considere uma construção exclusivamente humana, estamos falando de uma
instituição com 2.000 anos de idade, que se move para adaptar-se a novos
tempos, mas o faz em seu próprio ritmo.
"In saecula saeculorum", ou nos
séculos dos séculos —isto é, lenta e cuidadosamente. Se há uma entidade por
definição não revolucionária, esta é a Igreja Católica.
O argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa
Francisco, morto
nesta segunda-feira (21) aos 88 anos, entendeu isso. Como pessoa física,
Francisco abraçava ideias progressistas —sobretudo se as compararmos com as de
seu antecessor imediato, Joseph Ratzinger, o
papa Bento 16, cujo apelido, o "rottweiler de Deus", dá a
dimensão de sua rigidez doutrinária.
Alçado à Cátedra de São Pedro, Francisco não
abandonou as posições modernizantes, mas tampouco tentou impô-las a ferro e
fogo. Introduziu,
isso sim, mudanças sutis, que dão abertura para que sucessores as
aprofundem —se a Igreja, em seu ritmo, entender que esse é o caminho .
É nesse contexto que se deve entender a
famosa declaração de que não caberia nem a ele, papa, julgar homossexuais que
busquem Deus. A fala, que chocou os conservadores, foi complementada por
alterações pastorais que permitem a sacerdotes, em certas circunstâncias, dar
comunhão e a bênção a casais homossexuais, bem como a divorciados que
contraíram novas núpcias.
Francisco tentou tornar a Igreja mais
acolhedora para vários grupos, porém sem promover mudanças na doutrina e em
posições por demais consagradas da instituição. Não fez nada para tornar
o aborto mais
aceitável, por exemplo, mas logrou tornar a posição da Igreja mais coerente ao
fazer com que ela passasse a condenar a pena de morte em todas as
circunstâncias.
Também compreendeu bem que os movimentos
demográficos definirão o futuro da Igreja Católica. Ampliou a influência de
países de América
Latina, África e Ásia, cujas
populações ainda crescem, em detrimento da Europa, que
encolhe. Passou a dar especial ênfase à questão da imigração,
tema que se tornou um dos principais motivos de polarização ideológica no
mundo.
Outra marca do pontificado de 12 anos foi ter
trazido as questões ambientais e a desigualdade social para o centro das
preocupações da cúpula do catolicismo.
Divina ou humana, a Igreja não é imune às
vicissitudes da política. As ideias que Francisco introduziu decerto desagradam
às alas conservadoras. Mas a prudência com que ele as abraçou, sem ferir dogmas
nem os pontos mais importantes da doutrina, as tornam difíceis de rechaçar.
Mesmo que ele venha a ser sucedido por um
papa mais conservador, não será simples denunciar suas inovações como um erro
grave e simplesmente proscrevê-las. É o tempo da Igreja, afinal.
O desafio de proteger crianças na internet
Folha de S. Paulo
Tragédia com menina de 8 anos reacende
debate; ambiente online exige inteligência policial aliada a garantia de
direitos
Sarah Raíssa de Castro, de oito anos, morreu
no Distrito Federal após inalar desodorante ao realizar um desafio que
circula na rede social TikTok. Segundo
levantamento do Instituto DimiCuida, que atua na área de segurança online
infantil, de 2014 a 2025, 56 crianças e jovens entre 7 e 18 anos morreram em
decorrência de desafios na internet.
Eventos trágicos, compreensivelmente, geram
comoção. O poder público, contudo, não deve se deixar levar pelo aspecto
emocional, ainda mais ao tratar de um problema dinâmico e complexo —que, como
indicam os números, precisa ser enfrentado.
De acordo com a Secretaria de Direitos
Digitais do Ministério
da Justiça, a Polícia
Federal recebe por dia cerca de 1.500
denúncias de conteúdos online potencialmente abusivos ou perigosos
para crianças e adolescentes.
Os dados são do Centro Nacional para Crianças
Desaparecidas e Exploradas, entidade sem fins lucrativos dos Estados
Unidos, e chegam à PF por meio da Interpol.
No Brasil, o Laboratório de Operações
Cibernéticas do Ministério da Justiça e a Diretoria de Combate a Crimes
Cibernéticos da PF cuidam de monitoramento e investigação das redes. Denúncias
de usuários também são fundamentais. O país precisa unificar plataformas que
recebem denúncias, hoje dispersas, e integrar atuação e inteligência com as
polícias locais.
O governo estuda um código com dados oficiais
do cidadão, que, inserido em celulares, comprova a idade do usuário
—iniciativas similares foram adiante na Austrália e no Reino Unido.
A pasta da Justiça elaborou um projeto de
lei, em análise na Casa Civil, que prevê punição de plataformas por conteúdos
perniciosos direcionados aos mais jovens. Tal ponto merece cautela.
Segundo Lilian Cintra de Melo, secretária de
Direitos Digitais do Ministério da Justiça, plataformas já colaboram na
contenção desses conteúdos. Qualquer projeto de lei deve respeitar o Marco
Civil da Internet, elaborado após debate na sociedade e aprovado pelo Congresso
Nacional, que regula o ambiente online com base na proteção de direitos
fundamentais.
Especialistas apontam, ainda, a
importância da educação midiática, que deveria estar mais presente no
currículo escolar, e do monitoramento pelos pais de como seus filhos usam a
internet.
Não há bala de prata para lidar com
comportamentos nocivos no ecossistema online. Ações interdisciplinares baseadas
em evidências, focadas em inteligência e que respeitem direitos pavimentam o
melhor caminho para proteger a juventude digital.
Projeto de anistia deveria ser rejeitado pelo
Congresso
Valor Econômico
Os participantes de 8 de janeiro tornaram-se um apêndice da meta principal: perdoar os que participaram do planejamento de um golpe de Estado depois de 30 de outubro, para impedir Lula de assumir a Presidência
A ala bolsonarista do Congresso, concentrada
no PL, investiu a favor de um projeto de anistia, mal disfarçando seu sujeito
oculto - Jair Bolsonaro, ex-presidente que defende ditaduras militares e virou
réu, acusado de ser o líder de uma trama que culminaria em um golpe de Estado.
Em que pese poder o Supremo discutir a duração das penas aplicadas, a anistia
aos vândalos de 8 de janeiro é apenas um pretexto para inocentar previamente
Bolsonaro. O ex-presidente negociou o projeto, que colheu 262 assinaturas para
que possa ir a plenário e votado em regime de urgência. O deputado do PL
Sóstenes Cavalcanti (RJ) prometeu a ele submeter o texto no leito do hospital,
onde convalesce de cirurgia. Sob pressão, o presidente da Câmara, Hugo Motta
(Republicanos-PB), pretende se reunir esta semana para consultar os líderes das
bancadas na Casa, pois não quer decidir a questão sozinho.
No regime predileto de Bolsonaro, a ditadura
de 1964, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal tornaram-se apêndices
inúteis. Há indícios vigorosos de que o ex-presidente preparava um golpe e é
lamentável que existam partidos que abriguem líderes autoritários que desprezam
a democracia, razão de ser da representação parlamentar.
Mais da metade das assinaturas requerendo
votação em regime de urgência para a anistia veio da base governista, boa parte
delas de membros de partidos que ocupam assentos ministeriais no governo Lula.
O projeto de anistia apresentado no Congresso
tem pouco a ver com os atos deploráveis de 8 de janeiro, inspirados por
Bolsonaro e uma minoria de militares da alta hierarquia. Não há, entretanto, um
texto consolidado sobre o que pretendem os autores da iniciativa. A coleta de
assinaturas bem-sucedida, capitaneada por Cavalcanti, engloba condenados pelo
Supremo Tribunal Federal por manifestações violentas na Praça dos Três Poderes,
com os que planejaram um golpe de Estado.
O projeto original, possivelmente em razão do
qual as assinaturas foram colhidas, é de autoria do ex-deputado Major Vitor
Hugo (PL-GO) e concede perdão a quem praticou crimes políticos ou eleitorais e
a todos os que participaram de manifestações nas rodovias, em frente a quartéis
ou em qualquer lugar do território nacional do dia 30 de outubro de 2022 em
diante, até a entrada em vigor da lei. Isso inclui os terroristas que atacaram
a sede da Polícia Federal em dezembro e os autores do plano de explodir com um
caminhão repleto de combustíveis o aeroporto da cidade no mesmo mês. É fácil
ver em suas formulações a “anistia ampla, geral e irrestrita” agora exigida em
proveito próprio por Bolsonaro e outrora negada pelo regime militar de 1964 que
sempre defendeu.
O projeto que será finalmente encaminhado,
desconhecido ainda, poderá ir além e incluir a determinação de que o Judiciário
não possa, sob qualquer hipótese, modificar o que foi decidido pelo Congresso,
em uma clara interferência do Legislativo em outro Poder, vedada pela
Constituição. Os participantes de 8 de janeiro tornaram-se um apêndice da meta
principal, perdoar os que participaram do planejamento de um golpe de Estado
depois de 30 de outubro, para impedir Lula de assumir a Presidência.
Há negociações entre o Planalto e o deputado
Hugo Motta para demovê-lo de colocar em votação o requerimento, que atingiu o
número mínimo de assinaturas. Há centenas de requerimentos do tipo que não
foram a plenário. Iniciativas das lideranças do governo e da ministra Gleisi
Hoffmann buscam convencer parlamentares a retirar suas assinaturas, o que pelo
regimento da Câmara é um procedimento inútil depois que o pedido foi
protocolado. Um dos argumentos utilizados é evitar uma crise institucional,
colocando diretamente em confronto o Legislativo e o Supremo. O temor já é, em
si, um sinal preocupante de que o governo está inseguro se o Congresso afinal
aprove um projeto que o abastarda e que abre caminho a novas tentativas de
eliminar a democracia, ao garantir impunidade a golpistas. Isso mostraria, nas
palavras do líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), que “a classe
política pirou”.
É possível que a bomba política da anistia
seja desarmada esta semana. O projeto pode não ser votado e o Supremo decidir
mudar, como já vem fazendo, a dosimetria das condenações aos réus dos atos de 8
de janeiro, atenuando as punições. O STF deve acelerar esse processo,
aumentando a concessão de prisões domiciliares e diminuindo as penas impostas,
como apurou o Valor (17/04).
O Congresso Nacional nada fez até agora, no
ano legislativo, além de garantir suas próprias emendas e esvoaçar ao redor do
projeto estapafúrdio da anistia, impulsionado pelos bolsonaristas. Caso as
negociações para retirá-lo de evidência não prosperem, resta aos parlamentares
demonstrarem seu compromisso inarredável com a democracia. Estaria, além disso,
de toda forma, cumprindo os desejos da maioria da população - segundo pesquisa
do Datafolha de 7 de abril, 56% dos entrevistados são contra anistiar os arruaceiros
que depredaram a sede dos Três Poderes.
Um papa em movimento
O Estado de S. Paulo
Como um legítimo vicário de Cristo, Francisco
foi um sinal de contradição para progressistas e conservadores. Vindo da
periferia do mundo, ele levou a Igreja à periferia do mundo
“Parece que meus irmãos cardeais foram quase
aos confins da Terra” para dar um bispo a Roma, disse o papa Francisco do
balcão da Basílica de São Pedro em seu discurso inaugural. Doze anos depois,
ninguém se pergunta mais “Jorge quem?”. Mas quem pode dizer que entende
plenamente o significado de seu pontificado?
A familiaridade e a simplicidade estavam lá
desde o início, a começar pelo nome, o santo de Assis que conclamou os
cristãos, em especial os clérigos, a imitar Jesus vivendo na pobreza e
respeitando o mundo natural. Bergoglio recusou um aposento no Palácio
Apostólico em favor de uma hospedaria do Vaticano, calçava sapatos simples e
viajava num Fiat. “O carnaval acabou”, disse a um cerimonialista papal. Suas
primeiras visitas foram a prisioneiros e refugiados. Espontâneo, sempre a
caminho de pessoas às margens da sociedade, Francisco parecia ignorar as regras
da lei em favor das regras do amor.
“Somos a imagem do Senhor, e Ele faz o bem e
todos nós temos este mandamento em nosso coração: faça o bem, não faça o mal”,
disse com sua simplicidade característica. “‘Mas eu não acredito, padre, eu sou
ateu!’ Mas faça o bem: nós nos encontraremos lá”.
São traços que atraíram os que veem a Igreja
como restritiva e legalista. Seu acolhimento aos homossexuais e imigrantes
despertou a simpatia dos progressistas. Os conservadores se irritaram com um
pontificado que parecia transformar a Igreja numa espécie de ONG humanitária.
Mas, desconcertando ambos os lados, Francisco apelava incisivamente a temas
incômodos à sensibilidade liberal, como a atividade demoníaca na vida humana ou
o papel central da Virgem Maria na vida cristã.
Muitos viram nessa atitude uma espécie de
populismo religioso, na esteira da tradição argentina. “Todo o ponto do
peronismo é que não se pode fixá-lo”, disse o escritor irlandês Colm Toíbín.
“Ser um peronista significa ser nada e tudo. Significa que você pode por vezes
estar de acordo com as próprias coisas que em outras circunstâncias não é
realmente a favor”. Mas, nas palavras de Francisco, trata-se de “abraçar a vida
tal como ela vem”.
Quem esperava mudanças radicais em temas como
as regras do celibato, sacerdócio das mulheres ou casamento homossexual
sentiu-se frustrado. Mas a Igreja não é uma democracia e suas tradições e
ensinamentos não estão sujeitos ao voto popular. Francisco, no entanto,
submeteu essas e outras controvérsias ao debate. Antes dele, os sínodos eram
pouco mais que eventos coreografados para ratificar a vontade do alto
cardinalato.
Francisco foi um papa que pensou em termos de
processos. Assim, ele incomodou tanto “aqueles que querem mudanças (e esperam
decisões rápidas) quanto aqueles que, ao contrário, querem deixar tudo como
está”, disse o teólogo e repórter do Vaticano Hendro Munsterman. “O profético e
o cautelosamente duvidoso se juntam no papa Francisco.”
Francisco se foi com mais idade que Bento XVI
tinha quando renunciou e que João Paulo II quando morreu. Num momento em que o
mundo se fragmenta, “Francisco foi o primeiro papa verdadeiramente global”,
disse o historiador da Igreja Massimo Faggioli. Foi o primeiro latino-americano
e o primeiro não europeu desde o século 8.º. Foi o primeiro a visitar a
Península Arábica, onde, num gesto simbólico com o grande imã do Cairo, falou
dos muçulmanos como irmãos. Numa Igreja que definha na Europa e cresce na África
e na Ásia, ele trouxe o olhar das periferias, tal como o cristianismo primitivo
nasceu, das periferias do Império Romano. O Colégio de Cardeais que escolherá
seu sucessor será muito diferente daquele que o elegeu, incluindo uma amplitude
regional muito maior.
“Comecemos esta jornada, os bispos e o povo,
esta jornada da Igreja de Roma, que preside em caridade todas as Igrejas numa
jornada de fraternidade em amor, confiança mútua”, disse Francisco em seu
discurso inaugural. “Rezemos todos uns pelos outros.” Que seu sucessor saiba
conduzir a Igreja no espírito de humildade, simplicidade e abertura legado por
Francisco.
O peso da judicialização no PIB
O Estado de S. Paulo
Estudo do Insper mostra que derrotas da União
na Justiça custam 2,5% do PIB ao ano; despesa com precatórios é crescente, mas
impacto maior vem de benefícios previdenciários e assistenciais
O impacto fiscal de decisões judiciais no
Orçamento do governo federal correspondeu a nada menos que 2,5% do PIB em 2024,
segundo estudo elaborado pelos pesquisadores do Insper Marcos Mendes, Cristiane
Coelho, Marcos Lisboa e Leonardo Barbosa. É uma estimativa conservadora, em
razão da baixa transparência das contas públicas.
O tamanho do problema fica ainda mais claro
quando se verifica que esse porcentual era de 1% há 15 anos e que o gasto de
2,5% do PIB com condenações judiciais se sustenta mais ou menos nesse nível
desde ao menos 2020.
Em 2023, a perda foi ainda maior, de 3,2% do
PIB, uma distorção criada pela quitação de precatórios em atraso e pela
antecipação de pagamentos que originalmente só seriam realizados em 2024.
É verdade que os desembolsos com precatórios
judiciais e requisições de pequeno valor (RPVs) são elevados e vêm numa
crescente – são 30% da despesa gerada pela judicialização –, mas, segundo os
autores, eles são apenas parte de um problema bem mais amplo.
O real fardo das derrotas do governo federal
na Justiça vem de benefícios previdenciários e assistenciais determinados por
juízes e pagos de forma direta via Orçamento da União. Evidência disso é que,
com exceção de 2023, o gasto com benefícios previdenciários e assistenciais
superou o de sentenças judiciais.
De acordo com o estudo, os pagamentos
determinados pela Justiça já representam 9% da despesa primária total (em 2010
eram 5%), um gasto classificado como elevado, com tendência de alta e fora do
controle dos gestores.
As fontes do crescente gasto de dinheiro
público com decisões judiciais são diversas, explicam os autores, o que só
dificulta a solução do problema. Destacam-se, entre elas, a eterna fila de
espera do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Incapaz de lidar com a
própria demanda, o INSS vê a fila de solicitação de benefícios crescer, o que
faz com que potenciais beneficiários recorram à Justiça. Prova disso é que
estudo do próprio Insper de 2020 apontava que, num período de quatro anos, mais
de 9 milhões de processos administrativos contra o INSS foram abertos.
Mudanças frequentes na jurisprudência,
combinadas com a tendência do Judiciário de interpretar as leis de forma
“alargada”, o que não raro resulta na concessão de benefícios a pessoas não
elegíveis, só complicam o cenário.
Do lado tributário, há desde a complexidade
da legislação até o que os autores chamam de tendência da Receita Federal para
“dar interpretação criativa” às leis, o que abre flanco para mais contestações
judiciais, exploradas por escritórios de advocacia especializados nesse tipo de
ação.
A tendência do Supremo Tribunal Federal (STF)
de arbitrar a favor de Estados e municípios que demandam a União também é
listada pelos pesquisadores como um dos fatores que contribuem para que os
gastos do governo com a judicialização só aumentem.
Se as fontes do problema são abundantes, no
campo das soluções há um deserto. A fila do INSS, por exemplo, tinha em
dezembro de 2024 mais de 2 milhões de solicitações de requerimento de benefício
e perícia médica em aberto. Na campanha eleitoral de 2022, Lula da Silva
prometeu zerar tal fila, citando o mundo digitalizado. De fato, o mundo é cada
vez mais digital, mas o INSS segue em ritmo analógico.
Já o emprego de artifícios protelatórios,
como a imposição de tetos para pagamentos de precatórios ou limitação à
compensação de tributos, passa longe de ser solução, segundo os autores, pois,
além de eles não resolverem o problema, contribuem para o aumento da
judicialização.
A esta altura do campeonato, resta esperar
que o Conselho de Acompanhamento e Monitoramento de Riscos Fiscais Judiciais –
instituído em 2023 para, entre outros objetivos, “propor estratégias de
aprimoramento da governança sobre os riscos fiscais judiciais da União” – diga
a que veio. Até o momento, porém, o colegiado de caráter consultivo não tornou
pública nenhuma proposta para encaminhar tão importante questão.
A virada de Cubatão
O Estado de S. Paulo
De ‘Vale da Morte’ a ‘Cidade Verde’,
município mostra que é possível mudar a realidade ambiental
Outrora conhecido como “Vale da Morte”, o
município de Cubatão, na Baixada Santista, acaba de receber o selo
internacional de “Cidade Verde do Mundo”, concedido pela ONU. A distinção é um
reconhecimento aos esforços que o município, que chegou a ser considerado o
mais poluído do planeta, empreendeu ao longo de quatro décadas para reverter
uma situação impraticável.
Importante polo químico-industrial, o
município sofria com níveis de poluição dez vezes superiores aos considerados
aceitáveis pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O céu de aspecto amarelado
e o odor de enxofre eram característicos da cidade. A população sofria com a
incidência de doenças respiratórias, às vezes fatais.
O cenário para uma tragédia ainda pior que a
deste cotidiano de sofrimento estava plenamente anunciado: em 1984, um
vazamento de petróleo e a subsequente explosão de um duto da Petrobras que
passava por baixo das casas da Vila Socó mataram 93 moradores.
O episódio levou a uma mobilização do governo
do Estado de São Paulo, à época comandado por André Franco Montoro. Juntos, os
poderes públicos e as indústrias locais, apoiados pela população, passaram a
tratar a questão dos poluentes com seriedade. Alterações na matriz energética,
com substituição de óleo combustível por gás natural, e a instalação de
equipamentos para filtragem dos poluentes foram algumas das medidas adotadas.
Regras mais rígidas para a utilização dos
recursos hídricos, bem como sobre o despejo de materiais na natureza, também
foram adotadas. Corretas, as medidas passaram a render frutos gradualmente, e
em 1992, ano em que o Brasil sediou a primeira grande conferência ambiental da
ONU, Cubatão foi agraciada com o título de Cidade Símbolo da Recuperação
Ambiental.
Já o selo recém-conquistado de cidade verde,
que também já foi concedido a outros 33 municípios brasileiros, é relativo aos
esforços de recuperação da vegetação. De acordo com a FAO, agência da ONU para
alimentação e agricultura, esses municípios plantaram 404 mil árvores e
investiram R$ 586 milhões em manejo florestal. Em São Paulo, além de Cubatão,
também têm selo de “Cidade Verde” os municípios de São Paulo, São Carlos,
Hortolândia e Mogi Mirim.
“O prêmio reforça a necessidade de seguirmos
com projetos como a recuperação de manguezais, o plantio de árvores nativas e a
arborização urbana, fundamentais para a qualidade de vida da população e para a
preservação dos recursos naturais”, afirmou ao Estadão o secretário
de Meio Ambiente de Cubatão, Cleiton Jordão.
A virada de Cubatão evidencia que, quando há
empenho coletivo e suprapartidário, situações apocalípticas podem ser
revertidas. Mas, como pondera o secretário de Meio Ambiente do município, os
esforços devem ser constantes.
Tanto melhor, também, que tragédias como a da Vila Socó, perfeitamente evitáveis, não precisem acontecer para que os municípios brasileiros trabalhem para garantir o básico, que é a qualidade de vida de seus moradores num ambiente saudável.
Um papado pela união dos povos
Correio Braziliense
O legado deixado por Francisco foi construído
também por passagens e atuações marcantes na região com o maior número de
católicos do mundo
Primeiro latino-americano a se tornar papa,
Jorge Mario Bergoglio liderou a Igreja Católica sem esquecer das origens. O
legado deixado por Francisco — de tolerância, cuidado com o planeta e com as
pessoas e atenção aos dilemas da modernidade — foi construído também por
passagens e atuações marcantes na região com o maior número de católicos do
mundo.
A primeira viagem internacional, aliás, teve
o Brasil como destino — em julho de 2013, cerca de 100 dias depois de ser
alçado à pontífice — para participar da Jornada Mundial da Juventude. Ao
visitar a favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, Francisco deu sinais do que
ensinaria ao longo dos 12 anos de papado: "Se pode colocar mais água no
feijão? Sempre! E vocês fazem isso com amor, mostrando que a verdadeira riqueza
não está nas coisas, mas no coração", disse em um palco montado num
campinho de várzea.
Nessa empreitada pelo coletivo, Francisco
inovou. Trouxe a crise climática para a pauta da Igreja, com o tom de liderança
política que também lhe era característico. Em 2015, publicou a primeira
encíclica dedicada ao tema. A carta, uma espécie de orientação aos bispos sobre
questões de interesse da Igreja, foi lançada às vésperas do Acordo de Paris, um
momento-chave para a questão ambiental, quando foram definidos os parâmetros da
resposta global às mudanças climáticas.
Francisco fazia questão de dizer que a
encíclica não era apenas "verde" — "Cuidar do ambiente significa
uma atitude de ecologia humana, a ecologia é total, é humana"— e que era
preciso incluir os povos indígenas nesse processo — "Ignorar as
comunidades originárias na salvaguarda da Terra é um grave erro, é o
funcionalismo extrativista, para não dizer uma grande injustiça".
Três dias antes de ser internado com problemas respiratórios, no mês passado,
escreveu aos brasileiros lembrando que a COP30, em novembro, no Pará, poderá
ser decisiva nesse contexto. Também conclamou nações e organismos
internacionais a se comprometerem de fato "com práticas que ajudem na
superação da crise climática".
Falava-se em uma possível participação do
pontífice na conferência do clima — uma expectativa alimentada pela amizade com
o presidente Lula —, apesar das suas limitações de saúde já mais evidentes. Era
certo, contudo, que Francisco estava atento ao que se desenrolava no país com
mais católicos no mundo. Um dia após a invasão e destruição das sedes dos Três
Poderes, em 8 de janeiro de 2023, ele mostrou-se preocupado com a
"exacerbada" polarização política no Brasil. Na avaliação do
pontífice, um sinal de "enfraquecimento da democracia (...) que não ajuda
a resolver os problemas urgentes do cidadão".
A defesa do diálogo e da união é, sem
dúvidas, marca do papado de Francisco. Em Manguinhos, o pontífice também
visitou uma igreja evangélica, evidenciando a importância da harmonia
inter-religiosa. Dois anos depois, desembarcou na Colômbia para ajudar o país
"a seguir adiante em seu caminho pela paz" — ele ajudou a mediar as
negociações entre o governo e as Farcs. Não seria diferente na última mensagem
ao mundo. No domingo, em meio às celebrações de Páscoa e diante de uma Praça de
São Pedo emocionada com sua persistência em evangelizar, o revolucionário
jesuíta lembrou, mais uma vez, que "a paz é possível". Assim seja.
Francisco, o papa da misericórdia
O Povo
A morte do Papa argentino comove o mundo.
Apesar da dor que a perda ocasiona, acredita-se que o legado de bondade,
misericórdia e amor deixará frutos para o futuro da Igreja Católica
O papado de Francisco foi marcado por
ineditismos. De início, o primeiro papa jesuíta, o primeiro
latino-americano, o primeiro a usar o nome Francisco. Ao longo dos anos, foi o
primeiro papa a visitar nações como o Iraque, o Mianmar e o Timor-Leste, o
primeiro papa a participar de um funeral de outro, o primeiro papa a entrar
profundamente em assuntos sensíveis, como casais em segunda união e
homossexuais.
Em 12 anos, como que disposto a realizar uma
revolução pacífica e silenciosa, paulatinamente Francisco transformou
a Igreja numa instituição mais inclusiva e voltada aos pobres e aos
marginalizados. Abriu caminhos de diálogo com líderes políticos de um lado e de
outro, abraçou membros de outras religiões, construiu pontes entre culturas
diversas. Não à toa, nem só à mercê de um discurso feito tão somente para
encantar, propôs uma "Igreja em saída". Mais do que um conceito, era
uma definição que ele executou ao promover uma força missionária de ir ao
encontro dos mais necessitados, como num pastoreio pronto a servir as ovelhas
desgarradas.
Em seu aniversário, almoçou com pessoas
em situação de rua; em suas viagens apostólicas, quebrava protocolos ao
abençoar crianças de perto; em suas adversidades, pedia orações. Francisco foi
o testemunho real da simplicidade, ao recusar sofisticações próprias do cargo
que ocupava. Fez opção por estar mais perto dos mais pobres, dando-lhes a
esperança e trazendo-lhes humanidade, como um emissário da paz que evocava
constantemente.
Foi o porta-voz da vida angustiante dos
migrantes e se fez compaixão ao defender povos indígenas. Em seus últimos
dias, rogou novamente por um cessar-fogo e se pôs contra ao armamento.
Francisco não só pedia por mais justiça social, mas, sobretudo, agia em prol
dela. Seguia o ensinamento atribuído ao homem que lhe deu o nome de papa -
pregava o Evangelho de Cristo a todo tempo; quando necessário, usava palavras.
Do meio ambiente, foi um defensor como nenhum
outro. Trouxe para a Igreja os desafios modernos, chamando a todos e a cada um
à responsabilidade. Mostrou que os problemas provocados à natureza são
parte da sociedade, num incômodo que convocava à ação. Ensinou que a proteção
da Casa Comum é urgente e, sim, é um problema também da Igreja.
Por onde passava, o papa congregava
multidões. Mas é uma aparição pública solitária que marca também seu papado. Há
cinco anos, num março de 2020, em plena Quaresma, em meio a uma pandemia que
fazia aumentar progressivamente o número de infectados e mortos, ele cruzou a Praça
São Pedro, no Vaticano, numa caminhada tão triste quanto profunda, para rezar
sozinho pelo fim da covid-19. Concedeu a extraordinária bênção "Urbi et
Orbi" e se pôs aos pés da cruz de Cristo. O mundo se uniu em oração e se
calou num silêncio de clamor, em respeito à doação de Francisco.
Neste abril de 2025, um domingo após a
ressurreição de Cristo, na Oitava de Páscoa, novamente o mundo se uniu
para orar e clamar em silêncio, em respeito à partida de Francisco.
No dia anterior, despediu-se com um aceno
triste e discreto, já abalado pela fragilidade que o acompanhava. Desejou
"feliz Páscoa" num corpo visivelmente cansado, numa contradição
explícita à alegria expressa constantemente em seu sorriso que se rasgava em
ternura.
Em sequência à série de ineditismos que
inaugurou, o papa argentino continuou a cravar sua marca de humildade. Pediu
caixão simples, túmulo no chão, uma lápide discreta, um sepultamento na
Basílica de Santa Maria Maior, honrando sua devoção mariana.
Vive-se um "luto jubiloso", como
denominou o arcebispo de Fortaleza, dom Gregório Paixão, em referência ao Ano
Jubilar da Esperança e em alusão à tristeza da perda com a esperança da vida
eterna. O mundo já sente a falta de Francisco, mas, por certo, não esquecerá o
legado de bondade, misericórdia e amor que ele tanto fez para cultivar. Em
tempos sombrios, é doído ver a luz de Francisco se apagar.
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