- Folha de S. Paulo
Solução é isolar o presidente e constituir um núcleo de racionalidade com caráter de união nacional
[RESUMO] Pesquisador afirma que Bolsonaro —por incompetência e desinteresse por governar, o que encara como concessão ao "sistema"— é obstáculo para enfrentar a crise do coronavírus; solução passa por isolar o presidente e constituir um núcleo de racionalidade com caráter de união nacional.
Jair Bolsonaro sempre desafiou o bom senso. É a sua marca, foi o que até recentemente lhe garantiu apoio de uma base importante do eleitorado. Foi o que ele chamou de uma luta da “nova” contra a “velha” política. Funcionou até que parou de funcionar. O que aconteceu?
Traduzida em termos do dia a dia da administração pública, a luta da “nova” contra a “velha” política significa o seguinte: desde que Bolsonaro assumiu, o governo funciona apesar de seu presidente.
Diferentes forças políticas, dirigentes de instituições, servidores públicos de carreira se empenharam todos os dias em manter os serviços públicos funcionando apesar da ação desorganizadora do atual presidente.
Bolsonaro é basicamente um parasita político. Leva crédito porque os serviços públicos continuam a duras penas funcionando. E joga a culpa de todas as deficiências desses mesmos serviços públicos no “sistema”, na “velha política”.
Para Bolsonaro, quem discorda dele, qualquer coisa, pessoa ou instituição que se coloque contra sua vontade, faz parte do “sistema”. Por inacreditável que possa parecer, foi o que aconteceu com o coronavírus. Levando a sua estratégia do caos ao limite, ele interpretou a pandemia atual como uma tentativa de tentar enquadrá-lo no “sistema”.
É loucura que Bolsonaro tenha imaginado que o vírus era uma fantasia criada para derrotar seu projeto, mas a loucura continua tendo método. Combater o vírus e enfrentar a crise econômica que virá exigem que o presidente faça o que não fez até agora: governar. E isso, na lógica de Bolsonaro, é o mesmo que “se render ao sistema”.
Uma situação de emergência não permite manter a tática de levar o bônus de não governar e de jogar o ônus no “sistema” que ainda funciona, mesmo que aos trancos e barrancos. É urgente governar, é urgente que o “sistema” funcione.
Milhares de brasileiros estão sob a ameaça de morte pelo vírus e pelas consequências devastadoras da crise econômica pela qual vamos passar. É urgente evitar um desastre ainda maior do que aquele que já irá se abater inevitavelmente sobre nós. E isso Bolsonaro não sabe nem quer fazer.
Chegou o momento de colocar isso às claras. É preciso que os núcleos de racionalidade que têm operado até hoje nos bastidores para evitar o pior assumam abertamente a tarefa de dar rumo ao país, com articulações públicas e decisões transparentes. A crise é grave demais para ser enfrentada apenas pelas equipes que compõem esse governo.
O que ainda existir de racional e de institucional no Planalto precisa ignorar Bolsonaro e se articular com outras instituições e forças políticas fora do alcance dos poderes da Presidência da República para elaborar e implementar um plano de emergência eficaz para os próximos meses.
No entanto, um plano de emergência, mesmo coerente e bem estruturado, só vai funcionar se produzir confiança. E produzir essa confiança exige que as pessoas possam ver um núcleo de liderança que não seja Bolsonaro, que se mostrou inteiramente incapaz de liderar o país neste momento de grave crise. Bolsonaro é um obstáculo para a tarefa urgente de reunir o que for possível da inteligência disponível no país para enfrentar a crise e para restaurar a confiança.
É preciso isolar Bolsonaro, impedi-lo de continuar a ameaçar nossa segurança e nosso bem-estar. Isso não tem nada que ver com impeachment. Em um momento de emergência, apostar em um processo de cassação traria apenas mais confusão —e confusão é o ambiente em que Bolsonaro se sente confortável, é o que ele busca permanentemente.
Precisamos neste momento é de rumo, serenidade e firmeza. O afastamento legal de Bolsonaro da Presidência é assunto que não deve ser esquecido, mas não é assunto para agora.
O ideal seria constituir um núcleo de coordenação de ações com caráter de união nacional para isolar Bolsonaro e para dar rumo ao país. Pelo menos enquanto durar a crise atual. Poderia ser um núcleo de coordenação liderado pelo Congresso Nacional e composto por diferentes equipes técnicas, forças políticas, organizações da sociedade civil e mesmo integrantes da administração pública e do atual governo que aceitarem participar do esforço para o total isolamento de Bolsonaro.
Caso não seja possível um núcleo de coordenação com caráter de união nacional, que seja pelo menos um núcleo o mais amplo possível, que vá muito além das equipes que compõem o atual governo. Precisamos, a todo custo, evitar um desastre ainda maior do que aquele que já irá se abater inevitavelmente sobre nós.
Está claro para a maioria da população que Bolsonaro é um risco grande demais para continuar a ser tolerado como uma aberração sob controle. Todavia, risco ainda maior é voltarmos à situação anterior, à situação que nos trouxe à desorganização e ao caos que vemos hoje. O risco maior é Bolsonaro novamente pedir desculpas, dizer que está arrependido e que vai se comportar. Até que não se comporte novamente.
Isso não pode e não deve mais ser tolerado. A tática de Bolsonaro de atentar, todos os dias, contra a vida e contra as instituições e depois se safar com um suposto recuo não pode mais continuar. É preciso pôr um fim à armadilha de pensar que ele é um coitado que está sempre cada vez mais fraco, acuado, nas cordas.
É assim que sempre renasce de cada mergulho na insensatez que pratica: como um lutador incansável contra o sistema, como um humilde guerreiro do povo contra o dragão da maldade. Ficar sempre contando com que ele irá se enfraquecer, com que irá se comportar como presidente e governar, é acreditar na pantomima que ele representa. É jogar o jogo nos termos dele.
Foi, porém, o que se fez até hoje. Pessoas e instituições garantiram que iriam conter, controlar e tutelar Bolsonaro. Isso é impossível. Precisamos acabar de uma vez por todas com a ilusão de que apelar para a razão e para o bom senso do atual presidente terá algum efeito. A lógica de Bolsonaro é destrutiva e destruidora, nada de construtivo pode sair de suas palavras e seus atos.
Quando chegou a crise do vírus, o plano autoritário de Bolsonaro, mesmo que ainda muito vago, estava apenas em sua primeira fase, a fase do desmonte das instituições democráticas. Ele contava com a reeleição em 2022 para passar à fase seguinte, à construção do novo autoritarismo brasileiro, seja lá que cara viesse a ter.
A crise do vírus colocou a nu esse momento destrutivo de sua intenção autoritária. Colocou a nu sua incapacidade de enfrentar uma verdadeira emergência, sua incapacidade de governar.
Bolsonaro acha que ganhou um mandato não para governar, mas para destruir toda a ordem institucional construída na luta contra a ditadura de 1964 e no longo trabalho de elaboração e implementação da Constituição de 1988 ao longo de três décadas.
Para o presidente, a Constituição em vigor não apenas faz parte do “sistema” que é culpado por todos os males do país: a Constituição é o sistema. Bolsonaro insiste em que “o sistema” não desapareceu com sua eleição. Muito pelo contrário, o “sistema” continua mais vivo do que nunca, tentando impedir que ele cumpra suas promessas de campanha.
O atual presidente insiste em dizer que o melhor regime para o país é o que vigorou durante a ditadura militar, de 1964 a 1985. Foi um período de tanques nas ruas, junta militar de governo, extinção dos partidos, suspensão de eleições, cassação de mandatos, suspensão de direitos políticos, fechamento do Congresso, expurgos no Supremo Tribunal Federal, nas universidades, no serviço público de maneira geral, tortura e morte de opositores.
Para ele, a ditadura era um regime democrático. É típico de pessoas autoritárias dizer que uma ditadura pode ser democrática. É típico de grupos autoritários tentar chegar ao poder por meio de eleições democráticas e depois implantar o autoritarismo. Fazem isso falando em nome da democracia.
Para Bolsonaro, todo mundo que aceitou as regras da Constituição de 1988 é “de esquerda”. Não importa se for PSDB, PCdoB, DEM, PT ou PMDB. Não importa se for a Rede Globo, o Brasil 247 ou a Folha. Não importa se for uma organização como o MTST ou como a Todos pela Educação. Não importa se for uma peça de teatro ou um documentário.
A própria Constituição é “de esquerda”, faz parte da “falsa democracia”. Para Bolsonaro, a redemocratização é a responsável por todos os males do país. A “verdadeira democracia” é apenas aquela que existia durante a ditadura militar. Quem conseguir entender a expressão “a democracia da ditadura era a verdadeira democracia” conseguirá entender Bolsonaro.
Também por isso temos de contar com a possibilidade de que Bolsonaro nos reserve algo ainda pior do que falso arrependimento e falsas promessas de bom comportamento no futuro. Pode ser que tente mobilizar o que ainda tem de apoio para confrontar o “sistema” de maneira radical.
Bolsonaro pode partir para uma ruptura institucional de gravidade máxima. Não podemos permitir que um radical atentado à democracia venha se somar à gravíssima emergência sanitária que já enfrentamos. Na situação atual, um ato como esse seria tresloucado até mesmo para ele. Não é, entretanto, um cenário que pode ser descartado.
Daí a máxima importância de que os núcleos de racionalidade democrática da política tragam à luz do dia as operações de salvamento cotidiano que estejam dispostos a realizar frente a um governo desarticulado e incapaz de administrar um quadro de emergência.
Um polo público de organização e de liderança precisa surgir e servir de referência para a população. Em um momento de crise aguda, a política precisa voltar a ser jogada dentro das instituições. Mesmo que sejam instituições avariadas e capengas, que precisam urgentemente de renovação e de reforma.
Quando a crise passar, não podemos, simplesmente, deixar de lado a necessidade de renovação e de reforma das instituições, não podemos voltar à situação em que estávamos, como se nada tivesse acontecido. Isso, contudo, também terá de ficar para depois.
O momento da reorganização da política brasileira para além de Bolsonaro chegará. Uma vez mais a sociedade vai se mobilizar e fazer das tripas coração para realizar o que Bolsonaro não permite realizar. Mas para superar a crise da maneira menos dolorosa possível é preciso colocar Bolsonaro em quarentena política. Já.
*Marcos Nobre, - presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professor de filosofia da Unicamp.
Nenhum comentário:
Postar um comentário