sábado, 8 de outubro de 2022

Carlos Góes- Limitando o poder presidencial

O Globo

Fatores externos condicionam o governo. Em tempos de bonança internacional, o governante tem mais espaço para seguir de forma independente

Recentemente, eu ouvi de alguém que eu respeito muito a tese de que, apesar de Lula e Bolsonaro serem ambos ruins, seria mais fácil limitar o poder deste do que daquele. Mas isso é verdade?

Em princípio, a ideia é razoável. De fato, instituições como a mídia, a sociedade civil, os entes federados e o Supremo Tribunal Federal colocaram limites ao radicalismo de Bolsonaro. Ainda que de forma imperfeita, as instituições impediram um golpe, que é o que muitos apostavam que viria no governo do Capitão.

Os analistas mais atentos, contudo, sabiam que a probabilidade de golpe era baixa. O best-seller “Como as Democracias Morrem”, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, explica que o risco para as democracias modernas é uma deterioração gradual das instituições.

O caso clássico é o chavismo. Como já relatado nesta coluna (“Bolsochavismo”, 30/07/2022), uma das características do chavismo foi cumprir requisitos formais da legislação para violar o espírito da lei.

Um exemplo é a instrumentalização do Supremo Tribunal venezuelano. Por lá, os ministros do Supremo têm mandato de 12 anos. Após o chavismo perder as eleições congressuais, em 2015, coordenou-se a renúncia de todos os ministros do Supremo.

Com isso, antes da oposição assumir seus mandatos, nomearam novos ministros, impedindo a oposição de nomear pessoas não alinhadas com o regime.

Não há dúvida de que houve uma deterioração institucional recente no Brasil. Dentre outras coisas, o governo Bolsonaro interferiu na Polícia Federal, limitou a ação de órgãos de controle à corrupção e interveio em órgãos técnicos de saúde e meio ambiente. Afora isso, esgarçou a relação com os outros Poderes, tensionando a democracia brasileira.

Essa deterioração se reflete nos índices que tentam medir a qualidade da democracia no mundo, em que o Brasil caiu de posição.

Se as instituições, ainda que cambaleantes, resistiram, o novo Congresso eleito no último domingo põe em dúvida que isso ocorra no futuro. O presidente conseguiu uma maioria forte o suficiente para aprovar mudanças radicais, inclusive o impeachment de ministros do STF. O Congresso que assume em janeiro deve oferecer pouca resistência a Bolsonaro.

E se Lula ganhar, quais serão as pressões sobre seu governo? Num trabalho recente, o economista político Daniele Girardi mostra que, em eleições apertadas, há uma reação negativa do mercado quando o candidato de esquerda ganha. É o que se chama de “disciplina de mercado”.

Essa reação ajuda a limitar a capacidade do presidente em promover mudanças radicais. Como demonstra empiricamente a cientista política brasileira Daniela Campello no seu livro “The Politics of Market Discipline in Latin America” (“A política da disciplina de mercado na América Latina”, Cambridge University Press), a disciplina de mercado opera de forma mais intensa em tempos de crise econômica.

Fatores externos, como o preço das commodities e os juros internacionais, condicionam o governo. Em tempos de bonança internacional, o governante tem mais espaço para seguir de forma independente. Tempos de crise, ao contrário, tendem a forçar a moderação dos governantes de esquerda.

Intuitivamente, isso explicaria por que Lula colocou o tucano Henrique Meirelles no Banco Central enquanto Dilma aprofundou a Nova Matriz Econômica, que eventualmente resultaria na grande recessão de 2014-16. O primeiro assumiu após crises internacionais e alta inflação provocada por sua própria eleição, enquanto a segunda assumiria o governo no pico do superciclo de commodities, que garantiu abundância de moeda estrangeira no Brasil.

Quem quer que assuma ano que vem terá de enfrentar um cenário internacional de juros crescentes nos países ricos e com possibilidade real de recessão global. A evidência empírica disponível indica que, caso se confirme essa previsão, haverá um constrangimento real ao poder do candidato de esquerda.

A isso, soma-se o fato de que o Congresso vai ser majoritariamente de direita, limitando ainda mais a sua ação.

O objetivo de limitar o poder presidencial é legítimo e está na base de boa parte das democracias liberais. Faz sentido votar no candidato sujeito aos maiores limites externos a seu poder. Mas, no equilíbrio de forças atual, a tese mencionada no começo do artigo não parece se sustentar. Na realidade, o contrário parece ser verdade.

 

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