domingo, 7 de maio de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Adensando névoa: o Poder Executivo num novo sistema de governo em construção

Nos últimos oito ou nove anos, o sistema de governo no Brasil passa por um importante processo de mutação em suas regras (formais ou informais) e procedimentos. Isso quer dizer que a relação entre Legislativo e Executivo vem sofrendo modificações que levam a novas maneiras práticas de exercer as prerrogativas constitucionais desses dois poderes. Nenhum arranjo estável substituiu ainda o findo “presidencialismo de coalizão”, que o cientista político Sergio Abranches vislumbrou em 1988 e que se concretizou, na prática, de 1993 a 2014, mesmo que em vários momentos tenha havido mais cooptação do que propriamente coalizão. Pode haver controvérsia quanto ao adjetivo mais adequado a cada conjuntura específica, no âmbito daquelas duas décadas, mas ninguém duvida de que tínhamos um presidencialismo. Desde o tempo de Dilma 2 e Eduardo Cunha, a incerteza inclui também o substantivo.

Contudo, nem tudo é névoa nas relações entre os dois poderes governativos no Brasil de 2023. Os arranjos mutantes em vigor podem não fixar ainda um sistema estável. Mas existem, do ponto de vista político e nunca deixaram de orientar a vida institucional. Podem, portanto, ser analisados, como foram até em momentos críticos, de Bolsonaro com pandemia. A anomia nos rondou, mas não se instalou, porque temos sociedade civil e também porque o Congresso agiu com perícia naquele 2020 fatídico. Hoje, com mais razão ainda, podemos constatar que o processo de mutação do sistema de governo, que já dura quase uma década, não foi interrompido e que, passada a borrasca, ganha intensidade.

No ponto a que já pôde chegar o redesenho do sistema, sobressaem duas realidades incontornáveis. Uma, estrutural, é o maior empoderamento do Legislativo na `pequena política” (miúda, do dia-a-dia). Outra, contingente (embora duradoura), é a formação, também no âmbito do Congresso, de um bloco de centro-direita que atua, também, na grande política. Ele continua uma agenda de políticas liberais, retomada após o impedimento de Dilma e a ascensão de Temer. O impeachment fechou um hiato de seis anos de experiências desenvolvimentistas centradas numa lógica mais estatista e, com isso, atualizou linhas de força da década dos 90, com as quais o governismo lulista interagira positivamente até 2008. O Congresso de hoje atua sob o signo dessa continuidade política, pragmática e programática. Cabe lembrar que o fortalecimento da centro-direita vem sendo legitimado em seguidas eleições legislativas, desde 2014. Se a pequena ou a grande política predomina neste ou naquele momento (e os da pequena são, obviamente, mais frequentes), a responsabilidade não é só de um, mas dos dois poderes.

A névoa é muito mais densa quando se tenta analisar o que ocorreu e ocorre no âmbito do Executivo. As curvas e solavancos sugerem um tobogã em ziguezague. Um estrangeiro que tenha estado no Brasil durante a campanha eleitoral de 2014, fortemente marcada por uma postura ideológica da candidata vencedora, estranharia ver, no início do ano seguinte, a presidente reeleita indicar o Dr. Joaquim Levy para o ministério da Fazenda. A hipótese de que tenha sido uma revisão racional de posição também não se sustentaria diante do fato de que o seu partido e os movimentos sociais sobre os quais ele influi continuavam batendo bumbo pela partitura antiliberal da campanha. Tinham abrigo no palácio e o aval da presidente em manifestações e atos crescentemente ruidosos, embora politicamente inócuos.

No contexto pós-impeachment a partitura programática mudou e se manteve liberal em economia, ao menos até Bolsonaro (que sempre tocou de ouvido e mal nessa seara) incinerar qualquer programa político sério para a economia, num esforço populista desesperado para se reeleger. O tobogã em ziguezague marcou, o tempo todo, o Poder Executivo, no que diz respeito a pactos e métodos políticos. Abissal a oposição entre Temer e Bolsonaro, o primeiro alvo perene da Lava-Jato e praticante de um entendimento quase parlamentarista com o congresso e o segundo, surfista das ondas da faxina lava-jatista e da lenda da nova política, a demonizar Congresso, partidos e a política institucional em geral. Quando se chega a Lula 3 – e após quatro meses de governo - ainda não se sabe a que veio o Executivo quanto a que padrão de relações quer manter com o Legislativo na pequena política e a que agenda macropolítica afinal adere. Entre o viés centrista da sua área econômica e tendências - visíveis noutras áreas do governo e na retórica do presidente - de resgatar o voluntarismo do tempo de Dilma Rousseff, o tobogã em ziguezague ainda domina e segue rejeitando qualquer padrão estável de atitude política.

A oscilação dramática reflete-se também sobre a arena eleitoral plebiscitária em que se legitima mandatos presidenciais. Enquanto as eleições legislativas legitimam, no Congresso, há três legislaturas, o predomínio continuado e crescente de um perfil de centro-direita (ativa e não mais passiva como no passado mítico dos Lulas 1 e 2), nas eleições presidenciais, o eleitorado oscilou entre três faróis. Reelegeu, em 2014, por exígua maioria, um petismo de pretensões hegemônicas, na expectativa de manter um espetáculo de crescimento, emprego e renda que já não era possível; catapultou ao poder, em 2018 - depois de rejeitar, em pesquisas de opinião, um governo de transição de orientação liberal em economia e centrista em política - uma extrema-direita travestida de moralista mas destituída de qualquer valor republicano; e em 2022 elegeu, por maioria exígua como a de 2014, um Lula com seu foco de sempre no social, mas propondo método político agregador para a reconstrução nacional.

Diante desse contraste entre as dinâmicas pragmática e programática verificadas nos dois poderes, seria de admirar se a balança do poder sistêmico não estivesse pendendo mais, como está, para o lado daquele no qual a continuidade é a marca. Sobre essa objetiva correlação de forças é que se movem hoje os atores políticos que conduzem os dois poderes. A ambos não faltam disfuncionalidades, mas as que se verificam no Legislativo são muito menos graves do que as encontradas no terreno do Executivo. No Senado, principalmente, elas não são impeditivas de que, no comando da casa, tenha se firmado uma liderança ciosa do poder institucional que lhe cabe (defendendo-o seja de ameaças de outro poder, sob Bolsonaro, seja internas, pelo ânimo imperial do presidente da Câmara) e ao mesmo tempo flexível e cooperativa nas relações com o Poder Executivo e na defesa do estado democrático de direito. Na Câmara a disfuncionalidade é o fator Lira, tentativa de apropriação pessoal assimétrica de um poder sistêmico adquirido pela instituição na última década. Mas anticorpos já agem no próprio parlamento para que esse domínio pessoal temporário não se torne uma tradição capaz de refratar a tendência de fortalecimento de um poder institucional que resulta do processo de busca de um novo sistema de governo estável para substituir o presidencialismo de coalizão. Como tenho insistido nesta coluna, é também nessa chave – e não apenas na da política miúda – que deve ser interpretada a formação de um segundo bloco parlamentar de centro-direita na Câmara, entre o PSD, o MDB e o Republicanos. Essa agregação para a ação na pequena e na grande política significa que Lira não terá unanimidade nesse campo político-partidário para fazer seu sucessor, o que, no limite, pode vir a ser o fim de um centrão orgânico, filho dileto da fragmentação na pequena política. É um cenário possível de se materializar sem ameaçar a unidade do bloco politico mais geral em prol de associar liberalismo político e econômico numa agenda de governo compartilhada, disputada ou negociada com o Chefe do Executivo da vez.

No Executivo os problemas políticos parecem mais complicados e atrapalham a concretização, no novo formato que o sistema de governo venha a assumir, de uma recuperação parcial dos poderes de agenda e decisão exercidos por presidentes, até 2014. Isso não está fora de cogitação desde que se afaste, por definição, do processo de mutação sistêmica, a hipótese de retorno ao presidencialismo forte com poderes assimétricos do Presidente em relação ao Congresso. Dentro das balizas da democracia, esses ovos já estão fritos.  Como se tem repetido amiúde, um sério problema é que Lula e seu partido parecem até entender, mas não aceitar como irreversível a nova realidade. O presidente ainda reluta e parece querer restabelecer o protagonismo institucional e político que tinha em seus outros mandatos. Quanto ao PT, insiste em propor e, em certos momentos, impor ao governo, usando espaços institucionais que ocupa, uma agenda de esquerda que desafia amplos consensos vigentes no Congresso. A ambiguidade do presidente, decorrente da sua relutância em aceitar o compartilhamento de importantes funções governativas com o Legislativo, embora não ameace invadir prerrogativas deste, favorece, entre os ministros e parlamentares governistas, quem quer limitar em vez de aprofundar, um entendimento com o centro e a centro-direita, essa última amplamente majoritária no Congresso.

É erro ver o que ocorre hoje como consequência direta e necessária do que foi, até 2015, o modo Cunha de agir. Ali foi a pré-história, talvez a gota que faltava para o desfecho de uma festa e para que se impusesse uma reforma do sistema de governo. A história atual começa, realmente, na interação entre Temer e Rodrigo Maia, em 2016 e 2017. Lendo bem o momento, Temer antecipou-se e compartilhou o poder, único modo de manter-se nele. A eleição de Bolsonaro interrompeu esse processo. Com a omissão do presidente, o Congresso aos poucos assumiu o governo prático do país, através de uma coalizão parlamentar liderada por Rodrigo Maia. Depois da pandemia, com Bolsonaro ou sem ele, já não haveria chance de retorno ao antigo status quo das relações entre os dois poderes. Mas o Executivo, embora enfraquecido, era imprescindível para governar em tempos normais. A solteirice de Maia no poder levou à sua derrota no Legislativo, campo que seu protagonismo adubou. Lira herdou o espólio e o centrão entrou na grande política. Passou a ter luz própria e aí Bolsonaro leu e entendeu. Só que tarde demais. A demora foi fatal para ele. Cedeu anéis e dedos e aumentou o déficit de poder do Executivo. Seu caso parece dar razão a Hannah Arendt: se a violência assola é porque o poder já foi embora.

A vitória de Lula e o freio de arrumação do STF em janeiro desse ano criaram um cenário em que poderia (ainda poderá?) ser reiniciado o processo que começou com Temer e Maia. Com Pacheco isso está ocorrendo. Com Lira sabia-se que seria difícil. Mas a alternativa melhor seria mesmo a de ir tentando a inevitável negociação no varejo e, mirando o médio prazo, facilitar, pelos meios indiretos da articulação política, uma solução mais amigável para a sua sucessão. Isso passaria pela chancela e empenho do presidente em dar vida prática a um governo de frente ampla, escolha que, por sua vez, implicaria em atuar, nessa direção, nos planos da pequena e da grande política. Em outras palavras, incentivar, no parlamento, articulações novas, no campo da centro-direita, para contrabalançar o poder pessoal de Lira e aprofundar, no mundo político e na sociedade civil, o entendimento em torno de uma agenda econômica que não confronte a maioria do Congresso. O bloco parlamentar do PSD-MDB-Republicanos e o êxito preliminar das articulações da área econômica do governo em torno do arcabouço fiscal são indícios concretos da viabilidade prática desses virtuais caminhos.

O que até aqui foi feito, na necessária política miúda, é distribuir ministérios com aliados de centro e centro-direita, sem distribuir os respectivos poderes decisório e material. O primeiro é centralizado no presidente, o segundo concentrado no PT, como mostra a ocupação. pelo partido. de cargos relevantes nesses ministérios e a procrastinação ou óbice ao preenchimento de outros tais, pelos aliados. Os esforços das bancadas de alguns partidos de criarem, no parlamento, focos de poder fora da esquerda para contrabalançar o de Lira são ignorados em favor da crença numa negociação tête-à-tête entre ele e Lula. O preço prático tem sido acumular derrotas. Para justificá-las o dedo do chefe é apontado, com bom humor paternal, para seu ministro das Relações Institucionais. Ensaia-se um “vai pra casa, Padilha” ocultando que sobre os ombros do bode expiatório joga-se a missão impossível de articular sem script.

É verdade que da grande política surgiu uma diretriz positiva e ela se traduz, de modo crível, na proposta de arcabouço fiscal apresentada ao Congresso pela área econômica do ministério, liderada por Fernando Haddad. O problema é que Lula não dá à proposta a inequívoca condição de linha política do seu governo. Se assim fosse, como entender que partam de áreas governistas e do próprio palácio iniciativas como a de alterar o marco do saneamento e questionar judicialmente a privatização da Eletrobrás? São iniciativas inócuas, ou meramente propagandistas de uma agenda minoritária e de um estilo de gestão antigo.  O PT tem direito de defender, mas o governo não pode e o presidente não deve bancá-las, sob pena de desafiar o atual arranjo de poder em que está inserido. Essas iniciativas ofendem consensos congressuais sólidos e interferem negativamente nas condições de negociação da proposta que é, aparentemente, a principal. E não há sinal de arrefecimento do fogo amigo. Ao contrário, a bancada petista singelamente cogita apresentar emendas à proposta do seu próprio governo e o ministro da Secom disse ontem que o mal chamado “PL das fakenews” deve voltar à pauta da Câmara no próximo dia 16, data que se prevê para o arcabouço fiscal entrar na mesma pauta, após a viagem de Lira. Alguém perguntou a Haddad o que ele acha disso? É dúvida se se trata de descuido ou sabotagem.

Há duas falácias no discurso que quer recolocar agora esse bumerangue no colo da articulação política do governo. A primeira é fazer de conta de que no Brasil não há regulação das redes socias e mídias digitais. Acabamos de sair de um processo eleitoral em que ficou demonstrado o oposto. Se não houvesse regulação, nem instituição capaz de aplicá-la, Lula não estaria hoje onde está. A segunda falácia é o grau de urgência que se atribui a essa questão da regulação. Sem dúvida é importante, mas o bom senso político precisa colocá-la numa fila de prioridades. É um equívoco comprar essa pauta no Congresso antes de votar matérias como o arcabouço fiscal e a reforma tributária. É dar de bandeja uma pauta política para a oposição bolsonarista, que está encurralada por processos policiais e judiciais. O PL foi gestado no Congresso e como o Judiciário está muito ativo nessa questão, o tempo de tramitação podia e pode esperar até se dobrar o cabo das tormentas da governabilidade, mantendo assim a extrema-direita isolada e pressionada pelo Judiciário. Inexiste sentido coletivo no governo colocar pilha no tema a ponto de fazer a urgência legislativa parecer um interesse seu. O risco é facilitar a reconexão da extrema-direita com outras áreas de oposição e mesmo da base governista e ser um vetor de pressão a mais para o governo fazer concessões no arcabouço fiscal. Surpreende que um quadro político da qualidade do ministro Flávio Dino tenha se metido, fora de hora, nessa briga de cachorro grande.

Nesse tiroteio é difícil um ministro da Articulação enxergar caminhos. Confuso, o Poder Executivo descola-se do mundo real da política. Tende a perder mais espaço institucional num futuro arranjo para funcionamento estável do sistema de governo. Esse arranjo acontecerá, nenhum ator político individual será capaz de impedir. Por isso é mais que urgente Lula assumir a chefia do espaço de poder que lhe compete de fato. Ou se preferir, concentrar-se na busca de concluir sua biografia política pessoal num plano além do cotidiano, terceirizando a missão mundana e espinhosa de combinar política e governo. Com isso emprestaria sua ainda relevante legitimidade plebiscitária aos movimentos de alguém - ou de um conjunto plural de lideranças partidárias – que anteciparia, informalmente, o papel de um primeiro-ministro, uma das possibilidades no horizonte mutante do nosso sistema político. Seja por esse caminho cabal de governo de transição, seja pela sua decisão de colocar, ele mesmo, a mão na massa com a legitimidade pessoal que obteve nas urnas, Lula precisa mover-se. Como está não vai dar certo.

No imediato, a retórica farta dissimula o imobilismo prático. Mas a névoa que espalha nubla a visão do presidente para o essencial, que é a busca da forma política de viabilizar, num congresso conservador, a governabilidade fiscal, em seguida a tributária, para cumprir de fato, a pauta social que forma, juntamente com a defesa e o fortalecimento da democracia, o compromisso político que agregou uma frente de partidos e a sociedade civil e convenceu um número suficiente de eleitores a votarem nele.

*Cientista político e professor da UFBa.

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