domingo, 7 de maio de 2023

Míriam Leitão - Os fios que tecem a rede de crimes

O Globo

Na esteira da investigação sobre a vacinação, surgiu uma trilha de crimes: fraudes, golpismo, até do assassinato de Marielle se falou

Várias linhas de investigação cercam Bolsonaro e seu entorno sobre os desmandos que cometeram. Uma dessas linhas, que parecia menos promissora, a da vacina, ligou alguns pontos: fraudes, golpismo, até do assassinato de Marielle se falou. “É como Al Capone”, me disse uma fonte oficial se referindo ao caso de uma investigação que parecia acessória e que assumiu centralidade. Um jurista que eu ouvi falou uma palavra estranha, mas esclarecedora. “Serendipidade”, que é o “encontro fortuito de provas” para definir os achados que foram revelados na semana passada. Investigava-se um crime e indícios de outros crimes apareceram. Eles foram atrás.

Na hora do depoimento na Polícia Federal, o ex-militar Ailton Barros, o homem que falou que sabia quem mandou matar Marielle, tentou escapar com uma resposta rasa. “Falei bobagem”, disse no interrogatório. Não quis ir muito além disso, permaneceu em silêncio como os demais, mas isso não preocupa os investigadores.

Eles avaliam que o melhor agora é fazer o trabalho de análise do material recolhido nas buscas e apreensões. Com base nessa análise e tudo o que se descobriu e com o cruzamento com outros depoimentos, eles poderão voltar a ouvir Mauro Cid. Vão também intimar Bolsonaro. Terão então mais elementos para confrontar versões que eles estão apresentando.

Tudo o que se recolheu até agora, ao acessar os dados na nuvem do celular do tenente-coronel Mauro Cid, encostou em Bolsonaro.

—Nada do que era feito pelo Cid era por vontade própria. Ele era ajudante de ordens, cumpria ordens, dificilmente haverá uma desvinculação entre ajudante e ajudado— disse um dos investigadores.

A operação Venire revelou uma sucessão de crimes na esteira da falsificação da carteira de vacinação. Há ainda suspeita de lavagem de dinheiro: o equivalente a quase R$ 200 mil foram encontrados na casa do tenente-coronel. Além disso, as mensagens enviadas para o celular de Cid são mais uma prova de conspiração contra a democracia. Uma das autoridades que eu ouvi, que está envolvida com a elucidação do caso, definiu a sequência de eventos.

— Não é um fato isolado. Teve o 12 de dezembro (atos de vandalismo no dia da diplomação de Lula), o 24 de dezembro (bolsonarista colocou explosivos em um caminhão de combustível, perto do Aeroporto de Brasília), o 8 de janeiro, a minuta do golpe e agora todas essas mensagens. Não há dúvida que nós estamos revelando uma grande articulação voltada à permanência no poder daquele grupo — afirmou essa fonte. E mediante golpe de estado.

Outra pessoa a par das investigações ponderou que todos os investigados próximos a Bolsonaro até agora não o acusam. Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, Mauro Cid e Daniel Silveira. Mas essa fonte levantou uma dúvida.

— Até quando o núcleo mais íntimo dele vai assumir todas as responsabilidades, vendo os filhos de Bolsonaro livres, leves e soltos?

Na área militar, a informação é que evidentemente os comandantes não gostaram da prisão do coronel da ativa Mauro Cid. Afinal, ele chegou a ser indicado para comandar tropas. Era uma pessoa que buscava o generalato. Até que ponto o Exército está disposto a defendê-lo? O que eu ouvi foi que “ Cid não é um problema do Exército, mas da Justiça e da polícia”. E que todos os militares que participaram de ilegalidades responderão por seus atos. Perguntei se a carreira dele estava no fim e ouvi que “depende das investigações”.

A última semana descortinou de maneira evidente os vários perigos e as dolorosas tragédias pelas quais o país passou nos últimos anos. Não foi apenas um governo desastroso. Foi um governo que praticou crimes e tentou dar um golpe de estado.

Ao lado disso, houve um longo sofrimento na pandemia. A crise sanitária foi mundial, mas nos atingiu de forma particularmente violenta por culpa do presidente. Ver todos esses atos delinquentes no círculo íntimo do presidente em torno da adulteração de registros públicos de vacinação foi estarrecedor.

Na sexta-feira, a Organização Mundial de Saúde declarou fim da emergência da pandemia. Nós aqui contamos nossos mortos, mesmo quando eles suspenderam a divulgação pelo Ministério da Saúde. Foram 701 mil pessoas, 11% dos mortos do mundo, tendo o Brasil 2,7% da população mundial. Nossa carga foi pesada demais. As linhas das investigações se cruzam e cercam Bolsonaro e o seu entorno. Ainda há muito a revelar.

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